terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Tributo a Ivan e Rubens

Lionel Fischer

Como vocês têm visto, venho publicando várias matérias que constaram do jornal "Boca de Cena". Mas agora resolvi encerrar a série, mostrando a primeira matéria de capa da primeira edição do jornal, em agosto de 1995, assinada por Mônica Riani. Acho que ela será bastante útil sobretudo para os jovens estudantes de teatro, que talvez nem saibam quem foram Rubens Corrêa e Ivan de Albuquerque e a importância que tiveram para o teatro carioca, em especial a partir do momento em que criaram sua própria casa de espetáculos: o Teatro Ipanema.

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As almas gêmeas do Ipanema

Rubens Corrêa (66) e Ivan de Albuquerque (65) dispensam maiores apresentações. Afinal, já foram mais de 30 estréias e alguns bons Molière e Mambembe, entre outros tantos prêmios que a dupla conquistou desde que se irmanou em 1955 num despretencioso curso de dicção, onde conheceram a mestra Maria Clara Machado. Ator e diretor, diretor e ator, eles se confundem com a história do teatro carioca. Fundaram dois, o Teatro do Rio (hoje Cacilda Becker, no Catete) e o Ipanema, palco de loucuras como o fenomenal Hoje é dia de rock, de José Vicente, e de viagens sérias e respeitadas como O jardim das cerejeiras (Tchecov), Diário de um louco (Gogol) e O arquiteto e o imperador da Assíria (Arrabal). Completando 40 anos de carreira, a dupla inaugura as páginas centrais do "Boca de Cena", revendo alguns lances maravilhosos dessa jornada de vida cênica que se mescla à própria existência dos dois.


Boca de Cena - Como explicar 40 anos de ligação profissional como a que vocês têm? É um recorde em termos de "casamento"...

Ivan de Albuquerque - Somos muito cúmplices. Talvez por sermos do mesmo estado, Mato Grosso. Quando nos conhecemos, íamos muito ao cinema. Conversávamos até altas horas sobre os filmes que víamos, sobre teatro. O Rubens é mais que um irmão. E nos completamos também porque ele sempre quis representar e eu dirigir. Então foi perfeito. A vontade de trabalhar pelo teatro nos ligou muito.

Rubens Corrêa - Junguianamente falando, sempre procurei realizar o mito do herói, no qual há várias especificações e uma delas é "twins" (gêmeas). Ela determina que há pessoas com afinidades espirituais e artísticas: um completa o outro. É assim que nós somos.

BCD - Como vocês se conheceram?

I.A. - Foi pouco antes de entrarmos num curso de dicção na Fundação Escola Teatro Dulcina, em 1955. Eu entrei porque queria melhorar a minha voz. Cursava a Faculdade de Filosofia por causa da cadeira de Psicologia. Queria ser professor. No curso, porém, tive aulas com Maria Clara Machado e João Bethencourt. Fui na secretaria questionar, afinal estava tendo curso de teatro. Me disseram que eu tinha que aprender aquilo para dominar a pequena platéia de uma sala de aula. Acabei trazendo o Rubens, que queria estudar teatro na Inglaterra. Quando assisti Nossa cidade, dirigida pelo Bethencourt no Tablado, fiquei estarrecido. Ele tinha acabado de chegar dos Estados Unidos, onde foi fazer o curso de Doctor in Art, e realizou um espetáculo belíssimo. Vi que era teatro mesmo o que eu queria fazer. E chamei o Rubens para entrar no Tablado. O engraçado é que eu nunca teria coragem de ser ator, por causa da minha timidez.

R.C. - Devo tudo a ele. Jamais teria capacidade de criar com todas as dificuldades que o teatro oferece se não fosse o Ivan.

BDC - Foram três anos no Tablado até vocês arrendarem o Teatro São Jorge (hoje Cacilda Becker) e o transformarem no Teatro do Rio. Foi muito difícil o começo?

I.A. - Vivemos numa montanha russa, com altos e baixos constantes. Nosso escritório era um banco na Praça Nossa Senhora da Paz. Os dois primeiros trabalhos foram um caos. Com A ratoeira, de Agatha Christie, fizemos sucesso de público mas fomos cuspidos pela crítica. Ao montarmos O prodígio do mundo ocidental, os críticos aplaudiram e ganhamos vários prêmios, mas ficamos um bom tempo sendo tratados como "os meninos".

BDC - Mas vocês alcançaram logo um lugar de prestígio, não?

I.A. - A maior prova de prestígio que tivemos foi quando recebemos A invasão, do Dias Gomes, para montar. Eram 45 atores em cena e o Dias tinha acabado de receber a Palma de Ouro, em Cannes, por O pagador de promessas. Procurei Tom Jobim e Vinícius de Moraes para fazer a música e eles criaram de graça O morro não tem vez. Ganhamos todos os prêmios da época. Foi quando vi que estávamos dentro do teatro, sendo respeitados. Sempre fomos sérios como profissionais e empresários.

BDC - Ivan, você sempre diz que O jardim das cerejeiras, de Tchecov, a primeira peça levada no Ipanema, em 68, era um dos seus sonhos no teatro. Por quê?

I.A. - Eu amava o autor! Foi com ela que ganhei meu primeiro Molière. A peça, porém, foi prejudicada pelo movimento político de 68. Era para ser trilogia russa com Diário de um louco, de Gogol, e A mãe, de Gorki. Mas a censura proibiu a última e só pudemos fazer as duas primeiras.

BDC - Vocês praticamente "descobriram" o José Wilker, aliás um dos três "Zés (os outros foram o autor José Vicente e o ator José de Abreu)...

I.A. - O arquiteto e o imperador da Assíria foi um presente que a Maria Fernanda nos deu. Aliás, as mulheres sempre foram maravilhosas conosco. E com esse texto começamos a trabalhar com o Klaus Viana, que desenvolveu um processo de corpo muito intenso. Quando chamamos o Wilker para atuar conosco ficamos preocupados. Ele era muito feio, tinha um gogó enorme, usava uns óculos grossos, um horror. Mas o Klaus promoveu uma transformação nele e, ao estrear, todos diziam que ele se parecia com o Nureyev, pois ficou com um corpo perfeito. E nunca mais voltou a ser feio.

BDC - Um dos maiores sucessos do Ipanema foi Hoje é dia de rock, do José Vicente, em 1970. Foi realmente um fenômeno, com lotação sempre esgotada e se tornando cultuada pelo público. Como surgiu o projeto?

R.C. - Queríamos fazer um trabalho lisérgico. Tomamos ácido direto para criar o espetáculo, inclusive o Zé Vicente, que tomava para escrever. Sem contar que para encenar também tomávamos. Houve uma empatia muito grande por causa do movimento hippye. Formavam-se multidões na saída do teatro, era uma coisa incrível. Só a Isabel Ribeiro e o Klaus não se drogavam. Mas um dia o Cacá colocou colocou ácido na garrafa de café e nem a bilheteira escapou. Trabalhou vendo no guichê um túnel cheio de mãos e gritando para as pessoas pararem de jogar dinheiro ali.

BDC - Os altos e baixos financeiros foram frequentes na vida de vocês. Qual a lição que se tira?

I.A. - Olha, quando há um fracasso você começa a sangrar. É feito um jogo de roleta: ou dá preto ou vermelho. Parei de fazer teatro porque sofro demais. Perdi a conta de quantas vezes fiquei de cama por causa dos problemas do Ipanema. O ideal é ter um equilíbrio, mas a gente nunca aprende essas coisas. Eu e o Rubens choramos muito à noite por causa do teatro.

R.C. - O que fica é o prazer. O teatro te faz evoluir como ser humano. Cada personagem é um terremoto. Se pudesse voltaria a cada papel. Apesar da precariedade do Brasil, o teatro tem me dado mais prazer do que o sexo, banho de mar ou qualquer outra coisa. Se eu parar de representar, morro.

BDC - A última montagem de vocês foi A promessa, no CCBB, em 1990. Por que pararam?

I.A. - Não tenho mais aquele ardor juvenil. E não gosto de ser escolhido. Em todo caso, escrevi o texto Ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém me chama de Baudelaire e ando à procura de patrocínio. Mas me sinto satisfeito com o que vivi. O Rubens, não. Ele acha que se parar, morre. É um obstinado e teimoso, mas tão bom que às vezes parece um santo. Ele é capaz de chegar cansado do teatro e lavar uma louça. Diz que é bom para a humildade.

BDC - Uma década depois de sua inauguração, o Ipanema se tornou um dos principais points de shows. O que motivou essa mudança?

I.A. - Em 1977 fizemos A chave das minas, que não foi muito bem. Na mesma época,a música começou a viver um momento muito rico. E como existiam poucos espaços para shows, resolvemos experimentar. As gravadoras pagavam bem e era uma forma de testar o público para cantores novos. No Ipanema foram lançados nomes como Marina, Olivia Byington e Beto Guedes. Os shows faziam muito sucesso e durante anos acabamos abrindo as portas para muitos artistas. Um dos grandes momentos foi o show do Milton Nascimento com a Sarah Vaughan. Nos anos 80, porém, as gravadoras começaram a se retrair e os shows foram empobrecendo. Não vejo nada de mais no fato de ter aberto o Ipanema para a música. Afinal, ela também é uma manifestação cultural.

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ESPÉCIE EM EXTINÇÃO


José Wilker

"Quando conheci o Ivan e o Rubens eu já estava quase destinado a fazer teatro. Meu objetivo era me formar em Sociologia, na PUC. Foi então que eles me deram para ler O arquiteto e o imperador da Assíria, do Arrabal. E aí o teatro adquiriu um sentido todo especial para mim. Ivan e Rubens são uma espécie em extinção. Porque são verdadeiros homens de teatro. O Ivan é um diretor que te provoca sem jamais perder a doçura. O Rubens, além de ator fantástico, é um diretor que, quando percebe que você deve seguir um determinado caminho de interpretação, ele te permite esgotar todas as possibilidades."


Maria Clara Machado

"Quando conheci Rubens e Ivan vi os dois apenas como mais alguns alunos da escola da Dulcina, onde eu lecionava. Acabei chamando-os para o Tablado. A vida se encarregou de mostrar que seriam grandes profissionais. O que me chama a atenção neles é a seriedade com que encaram a carreira e como vivem tão intensamente o teatro".


Domingos Oliveira

"Sem o Rubens e o Ivan o teatro carioca não teria se desenvolvido tão rapidamente. No Teatro do Rio cada estréia era um acontecimento. No Ipanema, unidos ao Wilker, ouviram todas as vozes da contracultura. Nós do teatro carioca exigimos o mais breve possível no palco do Ipanema um espetáculo com os dois. Eles não podem frustrar gerações inteiras".


Fauzi Arap

"Acho que o Ipanema foi a última trincheira do teatro carioca ao manter uma companhia estável. Lastimo os problemas econômicos que praticamente paralisaram as atividades do espaço. O Rubens tem uma grande sublimidade como ator, é como uma escola viva, um exemplo a ser estudado. Ele e o Ivan se confundem. Os dois são gigantes do teatro".


Telma Reston

"Comecei minha carreira com eles, em 1960, no Teatro do Rio. Tinha acabado de sair do curso de teatro e tinha três convites. Fiquei com eles por terem um projeto melhor e com eles aprendi o que levaria cinco anos para aprender em outro lugar".


Jacqueline Laurence

"Nunca trabalhei com os dois, mas eles foram meus companheiros na primeira turma da Fundação Escola de Teatro Dulcina, onde fizemos A ratoeira como amadores. Há grupos jovens que trabalham para firmar uma nova estética. Eles foram a essência disso".


Vanda Lacerda

"Adoro aqueles dois! Hoje tenho uma ligação de trabalho com o Rubens, principalmente. Fizemos recentemente O futuro dura muito tempo, e foi mais uma vez maravilhoso. As maiores virtudes deles são a humildade, a inteligência e a capacidade de doação no trabalho".


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MONTAGENS QUE MARCARAM


TEATRO DO RIO

A ratoeira - estreou em 1960 (foi o primeiro sucesso da dupla no Teatro do Rio) debaixo de goteiras e problemas técnicos que deixaram Ivan de cama. Depois, se transformou em sucesso, sendo um coringa no repertório da dupla, que a montou sempre que estava com o caixa em baixa.

A invasão - Ivan define esta montagem como um " momento pleno".

Diário de um louco - montada com recursos escassos, acabou dando início a um ciclo de montagens sobre a loucura, que seria concluído com Artaud. "Foi uma das melhores coisas que fizemos na vida", diz Ivan, que recorda a primeira sessão, fechada para amigos: "Todos choraram de emoção".

A escada - Ziembinski, diretor convidado, dirigiu este espetáculo onde Ivan foi seu assistente. Rubens levou o Molière no ano de sua criação.


TEATRO IPANEMA


O jardim das cerejeiras - valeu o primeiro Molière a Ivan pela direção. Melhor começo impossível para quem estreava o Ipanema.

O assalto - produzida graças a Norma Benguel e Gilda Grillo, começou mal mas foi levantada pelas duas, que correram os quatro cantos do Rio para divulgar a peça. Foi um sucesso estrondoso e rendeu até casos de demissão dos bancários que iam assistir.

O arquiteto e o imperador da Assíria - revelou José Wilker, que virou galã nas mãos de Klaus Viana, que além disso mudou a interpretação dos atores com seu inovador trabalho de expressão corporal.

Hoje é dia de rock - a lisérgica montagem ficou um ano em cartaz e, em sua última apresentação, foi levada na praia, tamanho o número de pessoas que se aglomerou no Ipanema.


Outras montagens importantes do Ipanema:

Aprendiz de feiticeiro e Pluft, o fantasminha, de Maria Clara Machado

Como se livrar da coisa, de Ionesco

As moças, de Isabel Câmara

A china é azul, de José Wilker

O beijo da mulher aranha, de Manuel Puig

Quase 84, de Fauzi Arap

Artaud


segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

O milagre do 'jeitinho'

Bernardo Jablonski


Completo este mês 22 anos como professor de improvisação/interpretação no Curso Livre de Formação de Atores do Tablado, sob a direção de Maria Clara Machado. A data em si não completa nenhum núnero redondo e nem vai haver nenhuma festa comemorativa a respeito. Mas como o "Boca de Cena" me pediu uma avaliação acerca do ensino de teatro entre nós, decidi começar me posicionando em números.

E o que mudou nestes vinte e poucos anos?

Bem, vamos começar pelo que não mudou. Continua difícil o apendizado do ofício, uma vez que nossos candidatos às artes cênicas não dispõem do tempo necessário (ou da verba necessária) para o treinamento intensivo básico: voz (dicção e canto) e corpo (dança e expressão corporal). Neste ponto as meninas se saem melhor que os meninos, uma vez que nossa sociedade permite (ou incentiva) que meninas se aprimorem nas academias de jazz ou de ballet clássico. Homens saem em desvantagem. Mesmo que o nosso teatro não seja a Meca do Teatro Musical, e que o Teatro de Revista tenha desaparecido (apesar de eventuais e malogradas tentativas de ressuscitamento forçado), os fundamentos da dança servem para o adestramento, o controle corporal, noções de ritmo etc.

Muitos de nossos diretores, quando montam musicais, ao disporem de mais tempo para ensaios contratam, otimista e esperançosamente, profissionais de dança para colocarem seus atores em plena forma. Mas sem o devido embasamento, acaba acontecendo o de sempre: dois ou três que dançam "ficam na frente e no meio". O resto engana mesmo, cabendo a nossos engenhosos coreógrafos procederem ao milagre do "jeitinho". Neste sentido, como dissemos, o panorama não mudou. Falta de tempo, de coragem ou de disponibilidade continuam limitando a formação de nossos atores.


BOLINHAS X LULUZINHAS

Dentre o que mudou, podemos começar citando outra diferença de gênero. Ao contrário dos anos (muitos) anteriores, um maior contingente de rapazes vem procurando o teatro. As aulas vem deixando de ser um reino de Luluzinhas, com os Bolinhas disputando as vagas em número crescente, pelo menos na faixa etária entre os 15 e 30 anos. Na faixa infantil e na terceira idade, o problema aparentemente permanece.

Essa igualdade se dá, acredito, em função da maior aceitação da sociedade. Quando comecei a dar aulas, muita gente vinha esondida de pai e mãe, dado o preconceito do mundo "civil" com relação ao teatro. Isto, pelo menos, diminuiu bastante e sem dúvida nenhuma graças à televisão.

Se por um lado a Tv criou uma fábrica de ilusões, levando jovens e adolescentes à infundada crença de que seria preciso muito pouco ou quase nada para virar estrela, por outro, ajudou a liberalizar os costumes entre nós, enfraquecendo as atitudes francamente contrárias ao teatro e a tudo que estaria a ele associado. É claro que a própria crise sócio-econômica contribuiu bastante. De repente muitos pais e mães urbanos descobriram que o sonhado diploma de médico, advogado ou engenheiro, não serviria para muita coisa, principalmente se comparados à aparente facilidade em fazer dinheiro que o mundo da TV (novelas e comerciais, artistas e modelos) parecia ajudar a fazer.

"Paquitas", jovens galãs de TV, modelos e manequins famosas (os) abriram os olhos da sociedade e emprestaram credibilidade e dignidade - por incrível que pareça - à nossa profissão. Pode-se questionar se um senso de dignidade que vem pelos bolsos merece este nome, mas a Moral costuma trilhar caminhos muito curiosos...


DEMOCRATIZAÇÃO

Outra mudança diz respeito à democratização do acesso ao teatro. Ao contrário de alguns anos atrás, quando só a classe média da Zona Sul procurava os cursos de teatro, o que se observa é que os alunos agora vêm também da Zona Norte e do subúrbio. O sonho de ser artista expandiu-se, ao menos, geograficamente.

O panorama não se alterou no que diz respeito às leituras e ao aprendizado teórico. Poucos se mostram motivados a encarar os textos necessários e a estudar teatro. Neste ponto, confesso que não percebi progressos significativos.

Quanto à ida ao teatro, nossos alunos não parecem muito inclinados a assistir os espetáculos em cartaz. Embora todos queiram ser vistos (e aplaudidos) em suas práticas de montagem, nos espetáculos infantis - ou alternativos/ adultos - em que estejam atuando, na hora de ver os outros a coisa muda de figura. O que, convenhamos, é um comportamento nada meritório. Muito narcisismo para pouca consciência da profissão escolhida.

Igualmente pouco recomendável é a ânsia de conseguir espaço na "telinha". Embora não sejamos ingênuos a ponto de negar a importância - quase vital, hoje em dia - de se conseguir um lugar ao sol na TV, lamentamos que as energias estejam pouco voltadas para o esenvolvimento gradual, suado e meticuloso, acompanhado de muita poeira de palco.

O brilho da TV ofusca nossos jovens atores e rouba a motivação para o necessário trabalho de aprimoramento, que só a prática teatral regular (e cansativa e difícil) poderia trazer. Sem querer cair na esparrela de uma análise apressada, talvez esteja aí a principal causa da vitalidade teatral são-paulina: lá não há uma TV Globo seduzindo e sugando os principais talentos em atividade.

Enfim, foram estas as principais mudanças que pude perceber ao longo destas últimas duas décadas. Umas para melhor, outras nem tanto. Estas considerações foram feitas a partir de minhas observações em Cursos Livres, mas creio que elas também se apliquem - em menor ou maior grau - aos estudantes de escolas regulares.
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Artigo extraído do jornal "Boca de Cena" nº 3
Diretor: ter ou não ter?

Claudio Torres Gonzaga


Seria possível substituir o maestro por um metrônomo gigante? Fellini acha que não, como vimos em Ensaio de orquestra. Mas poderíamos acusá-lo de advogar em causa própria. A orquestra inglesa Hanover Band conseguiu resultados positivos sem a presença de um maestro, como podemos ouvir na sua versão de 1985 para a "Quinta Sinfonia", de Beethoven. E o teatro? Como se sairia sem um diretor?

A figura não é das mais antigas na história do teatro. O diretor, conforme conhecemos hoje, só vai aparecer na segunda metade do século XIX. Como, então, se viravam os gregos ou os elizabetanos? Podemos perceber, pelo sucesso de público e crítica de autores como Sófocles ou Shakespeare, que a falta do diretor não criou grandes problemas.

Mantendo as devidas proporções, os atores do espetáculo Lábios que beijei apostaram na ausência do diretor. Ao assistir à montagem, a análise de algumas questões sobre esse tema me pareceu pertinente. A primeira delas diz respeito à diferença entre o "não-diretor" e o desmembramento da função; na tentativa de trabalhar sem um diretor, o que aconteceu foi que tiveram quatro!?

Quando se tentou pesquisar a falta, o que se testou, na verdade, foi o excesso. Nesse caso, a dúvida passa a girar em torno da possibilidade de se realizar espetáculos com um número de diretores igual ao de atores.

Evidentemente, a pergunta quanto à possibilidade da realização de um espetáculo nessa circunstância está respondida - a peça está em cartaz, com suas virtudes e falhas. A próxima pergunta será, então, onde tais virtudes e defeitos tangenciam a questão dessa forma de direção.

Se tivesse assistido ao espetáculo desconhecendo a forma de trabalho adotada, diria que o diretor resolveu melhor os problemas de marcação e acabamento plástico do que os relativos à direção de atores. Talvez esteja aí a grande dificuldade de se trabalhar sem nenhuma pessoa de fora, que possa intermediar o tète-a-tète dos atores para resolver os problemas da encenação.

Não me parece um bicho-de-sete-cabeças um colega pedir ao outro para ficar mais à direita; sentar-se, naquela outra cena; ou, ainda, plantar uma bananeira durante aquele solilóquio existencial. Até mesmo esse pedido esdrúxulo me parece mais simples do que interferir na criação do papel do colega, ou na escolha das intenções e desenhos vocais do parceiro. Neste caso, o diretor único é insubstituível (até prova em contrário).

Em outras épocas, a conceituação do espetáculo era dada pelo próprio autor que, em última análise, fazia às vezes o papel do encenador. No caso de um espetáculo sem diretor, a sua sobrevivência passa a depender da capacidade de conceituação embutida no texto pelo autor, o que, em Lábios que beijei, dá-se de forma bastante satisfatória.

Evidentemente, no momento em que vivemos, no qual o encenador ocupa uma posição autoral tão forte, não se pode exigir aquilo que o espetáculo efetivamente não tem: autoria de direção. É difícil aceitar um espetáculo sem diretor em um momento de hegemonia do "espetáculo de diretor". Esta não é, porém, a única forma do fazer teatral. A figura do diretor só é, de fato, imprescindível, nos "espetáculos de diretor" (até prova em contrário).
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Artigo extraído do jornal "Boca de Cena" nº 3

sábado, 26 de dezembro de 2009

A crítica em debate

Claudia Miranda


Afinal, são os críticos de teatro competentes ou não? Atento aos palpitantes debates sobre o tema que nos últimos tempos vêm tomando conta da mídia carioca, o "Boca de Cena" abre suas páginas centrais para a discussão. Ouvimos importantes diretores e críticos do Rio de Janeiro, que manifestaram sua opinião a partir de duas questões básicas: qual seria, teoricamente, a função da crítica e como ela anda se comportando na prática. Divergentes ou não, os depoimentos mostram que todos estão peocupados com o engrandecimento do teatro. Coisa que, ninguém duvida, só vai acontecer através da constante troca de idéias entre pessoas envolvidas com o processo teatral. Enfim, está aberta a discussão.

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BARBARA HELIODORA (crítica do jornal O Globo)

O crítico tem uma dupla função: informar ao público sobre o espetáculo e discutir com os realizadores se eles conseguiram atingir o que pretendiam com aquela montagem. Agora, se o crítico está, na prática, conseguindo ou não cumprir essa função, é uma questão de cunho pessoal. A experiência mostra que o leitor se identifica com o profissional que tem um gosto parecido com o dele. Em relação à classe teatral, acho que a convivência entre a crítica e os diretores, atores e produtores é plenamente satisfatória. Mas é claro que há sempre aqueles que chamam o crítico de imbecil quando este não faz um texto favorável sobre o seu trabalho. O que se há de fazer? São os ossos do ofício.


MACKSEN LUIS (crítico do Jornal do Brasil)

Acho que o papel da crítica vem mudando ao longo dos anos. Há 20 anos seu papel era de formadora de sensibilidade crítica. Hoje está muito mais presa à informação jornalística. Diferentemente de antes, quando era mais acadêmica. Do ponto de vista da imprensa o que se espera é que a crítica seja mais informativa do que analítica. Nesse sentido, tem mais repercussão quanto mais polêmica for. Mas acho que a crítica deve ser primeiramente analítica. Se isso não acontece ela vira uma mera resenha. Do ponto de vista do leitor, acho que ele espera que a crítica seja indicativa. Ou seja, se vale a pena ou não assistir ao espetáculo, numa visão estritamente consumista do fato teatral. Não sei qual dessas funções a crítica está assumindo. Mas tenho a impressão que o papel que ela pode vir a assumir está mais ligado à crítica acadêmica, embora atualmente, na imprensa, ela esteja condenada a fazer menos história e a registrar mais os fatos.


ARMINDO BLANCO (crítico do jornal O Dia, já falecido)

O grande Rubens Corrêa dizia que jamais havia mudado uma cena por influência da crítica. Jamais tentei ensinar Rubens Corrêa (ou Fernanda Montenegro, ou Paulo Autran, ou Luis Melo) a representar. Escrevendo sobre teatro, procuro, sobretudo, ajudar o público a "olhar". O teatro tem um código nem sempre acessível e menos ainda aos que não estão habituados a seguir o curso, às vezes torrencial, da oralidade dramática. Mas o crítico que empresta o seu olhar aos outros também depende do que lhe é proposto, dos desafios colocados à sua inteligência, à sua sensibilidade, ao seu senso ontológico, ao seu modo de estar na vida. Houve um Belinsky porque houve um Dostoiewsky; houve um Saint-Beuve porque houve um Balzac. Os críticos crescem com os criadores. E se, eventualmente, parecem medíocres, é porque a mediocridade está à sua volta, tomando conta das artes e de artistas, que se supõem melhores do que são.


LIONEL FISCHER (crítico do jornal Tribuna da Imprensa)

Se a crítica teatral desaparecesse, o que fariam os artistas para obter uma avaliação crítica do que realizaram? Os amigos, todos sabemos, deixam-se levar por sua afetividade e dificilmente conseguem esquecê-la na hora de refletir sobre o trabalho de alguém querido. O público? É uma possibilidade: mas isto obrigaria as produções a enviar um questionário a cada espectador e recolhê-lo pouco depois, sabe-se lá como. Ou então a enquete se faria ao término de cada sessão, com resultados altamente duvidosos - as pessoas, em tais circunstâncias, tendem a priorizar a diplomacia em detrimento da sinceridade. Restaria uma auto-análise coletiva, processo nem sempre eficaz porque abre mão do indispensável distanciamento. Assim, chega-se à conclusão de que a crítica é absolutamente necessária, desde que exercida com conhecimento de causa e com total respeito pelos artistas. E se a crítica jornalística funciona mais como uma ponte entre o espetáculo e o leitor e menos como uma reflexão mais aprofundada sobre o fenômeno teatral, isto é inevitável, já que o espaço disponível para a análise de um espetáculo não permite uma avaliação mais detalhada de todos os elementos envolvidos numa produção.


DOMINGOS OLIVEIRA (ator, diretor e dramaturgo)

A função antiga, inútil e negativa da crítica é criticar. A função moderna e construtiva é elogiar. Não é preciso coragem para criticar 99% de tudo que nos cerca nesta sociedade moderna. A coragem é descobrir o que é bom e apoiá-lo entusiasticamente. A função do crítico é desenvolver a nobre arte do elogio do bom. Fora isso, ele somente faz mal ao teatro. E como vem sendo exercida essa função? Vergonhosamente. Claro que existem bons críticos, gente criativa e construtiva, mas infelizmente nos dois principais jornais do Rio de Janeiro (JB e Globo), os críticos oficiais e vitalícios (Macksen Luis e Barbara Heliodora) têm feito um trabalho metódico e tenaz de destruição do teatro. Além de grosseiros e indelicados, são reacionários e avessos a qualquer tipo de profundidade. Mas não é grave, afinal todo mundo tem direito a opinião, vivemos numa democracia. Grave e nada democrático são as "Colunas de Recomendados". Puro abuso de poder econômico, contra-propaganda violenta das peças que não estão ali, este tipo de coluna tinha de ser assinada por um painel de críticos. Afinal, o teatro não pode ser frontal e regularmente prejudicado pela opinião subjetiva de nenhum crítico em particular, Macksen, Barbara ou o Papa.


EDUARDO WOTZIK (diretor teatral)

Antes é importante ressaltar o que queremos para o futuro do teatro. Queremos que o teatro seja cada vez mais um espaço de encontro entre os homens. Que o teatro alcance valor social. Que o Rio de Janeiro seja um polo cultural efervescente. Que os espectadores compareçam aos espetáculos. Discutam, julguem. Que sejam estimulados em sua sensibilidade. Estimulados a ir ao teatro e a tirar suas conclusões a respeito do que viram, fomentados em sua capacidade crítica. Essa é ainda nossa verdadeira briga. Ainda lutamos pela valorização da cultura em nosso país. Ainda estamos em processo de formação de uma platéia. De colocar o teatro num lugar de excelência. De afirmar junto à população a importância social da arte. Então, eu vou criticar a crítica e os críticos? Que cada um se conduza a seu silêncio. E reflita suas responsabilidades neste processo.


LUIZ ARTHUR NUNES (diretor teatral)

A crítica tem duas funções. Uma delas é promover um diálogo com o artista que o faça refletir sobre o seu trabalho. Normalmente, o que o artista tem em termos de retorno são o apaluso, o riso ou a vaia do público e os elogios dos amigos. Comentários que ficam na superfície. Raramente temos a oportunidade de refletir mais profundamente sobre a nossa obra. Nesta medida, o crítico é alguém especializado e muito importante. A outra função, esclarecedora, fazer para o público uma leitura do espetáculo. A meu ver os dois objetivos não têm sido cumpridos, absolutamente. Os críticos distribuem elogios ou maldições sem justificá-los. Baseado no gosto ou em princípios estéticos pessoais. Muitos são arrogantes e agressivos. Existe uma coisa chamada respeito profissional. Acho negativo este tipo de crítica que ataca a montagem sem levar a nenhum tipo de reflexão. Só serve para traumatizar o artista. Duvido também que o público aproveite alguma coisa desse tipo de crítica.


SERGIO BRITTO (ator e diretor)

A crítica teatral ou a crítica artística de um modo geral só tem importância quando consegue esclarecer o fenômeno. Discutir a pretensão do espetáculo; até que o ponto o autor, compositor ou autor conseguiu realizar o que pretendia; e até que ponto os intérpretes absorveram o verdadeiro sentido daquela obra. Então a crítica só tem importância quando enriquece o conhecimento cultural da gente que faz teatro e do público que o frequenta. Quando a crítica é apenas opinativa, tipo "eu não gosto disso ou não gosto daquilo", ela passa a não significar nada. Fica parecendo uma coluna social de fofoca. A crítica tem que contribir para o processo teatral, esclarecendo-o. As críticas muito furiosas, que atacam a peça, dizimando-a, perdem a sua função de explicar o espetáculo, analisá-lo, dizer o que ele significa ou o que poderia significar. A ferocidade de boa parte da crítica moderna faz com que ela não tenha nenhuma utilidade. É uma pena. De vez em quando a gente lê umas críticas surpreendentes. Há pouco tempo li uma crítica que faço questão de recomendar. Era do Macksen Luis falando da peça "As bacantes", do Zé Celso Martinez Corrêa. Foi um acerto. Eu o parabenizo, ele ajudou as pessoas a compreenderem o espetáculo.


FLÁVIO MARINHO (ex-crítico, autor e diretor)

A responsabilidade do crítico é com o leitor. É claro que, por tabela, ele estabelece uma ligação com o artista, mas sua função é orientar o público levantando as qualidades e defeitos dos espetáculos. O público então decide se vale a pena ou não assistir ao espetáculo. Para mim, esse é o crítico na sua forma idealizada. Alguns agem dessa forma, o Lionel Fischer é um deles. Mas existe uma parcela da crítica atrelada a uma espécie de preconceito estético que termina privilegiando determinado tipo de estética teatral. Não é que sejam negativos em relação aos bons espetáculos que não sigam essa estética, alguns até reconhecem o valor de outros gêneros de encenação. Mas a identificação do crítico com o objeto criticado é tão forte que ele acaba privilegiando uma determinada linha. Quando fui crítico tinha uma ligação muito forte com os musicais, gênero que me mobilizava mais do que aos outros críticos. Portanto, acho que a parcialidade é inerente ao ser humano, ainda que o crítico deva tentar ser o mais imparcial possível. Mas quando vejo a total inexperiência do pessoal que critica música e cinema é que percebo o quanto estamos bem servidos de críticos. São pessoas do ramo e que entendem do que estão falando.
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Artigo extraído do jornal "BOca de Cena" nº 7.

Arte e Medicina

Maria Regina Borges Garibaldi


Desde a antiguidade se fala na Medicina como uma arte e mesmo Hipócrates já se sereferia à "arte de curar". Dentro dessa compreensão nós, médicos, deveríamos ser um pouco como os artistas, pessoas com uma sensibilidade mais aguçada, e verdadeiramente interessados no mistério e no conhecimento do outro. E para conseguir esse objetivo até nos formamos em escolas para adquirir as ferramentas necessárias para o exercício da profissão. Entre as ferramentas uma das mais úteis é a escuta: escutar o que o corpo fala e interpretar o que ele diz!


E não é por acaso que ao falarmos de medicina é possível usar palavras ligadas às artes. É até pertinente associar a consulta médica ao teatro. No palco o artista estabelece uma comunicação com o público e quer passar uma mensagem, e gratificado estará se puder causar alguma transfomação. É preciso que haja uma disponibilidade dos dois lados e se a entrega acontece, pronto: é mágica!

Nós, médicos, nos deparamos com o paciente (que é o nosso público) nesse estado de disponibilidade. Despertamos nele um estado de admiração e até de um certo encantamento. O paciente está entregue, a despeito de suas inibições e medos e se despe, literalmente até, acatando as nossas solicitações. É preciso ter muito respeito por esse gesto de entrega. Ele quer saber o que acontece com ele, acabar com suas inquietações e dores e pede compreensão e afeto! E é nesse palco que se torna necessário acontecer a verdadeira escuta porque senão o encontro dança. Não há relação interpessoal e a transformação não será possível. Ou seja, sem sensibilidade é impossível fazer medicina.

Muitos médicos, por terem dificuldades em relação às suas emoções, se fecham durante o ato da consulta. São frios e impessoais. Não se envolvem com os aspectos emocionais das doenças. E fazem uma medicina voltada para a doença e não para a pessoa.

Quem é o pesonagem da doença?
Como está a vida dele?
Como ele lida com suas emoções e sua saúde?

E o que dizer da criança, do paciente que não fala e que muitas vezes é falado de uma maneira equivocada. Interpretar a criança é um desafio! Até porque ela ainda está ligada na sua fantasia pessoal, ela não desistiu ainda de criar suas próprias explicações para o que está acontecendo com ela.

A criança é um ser especial. Passa por transformações físicas e psicológicas que são marcos fundamentais para o seu desenvolvimento. Cada fase é única e cheia de peculiaridades. E a criança de hoje não é mais a mesma criança de ontem. Hoje ela é a criança da violência, da perda da inocência, da informação e da informática, da AIDS, dos condomínios e shoppings, dos pais "não tão presentes".

Quem é essa criança que se preocupoa com o saldo bancário dos pais, que questiona a morte dos meninos da sua idade na Candelária, que cobra afeto e atenção em um ritmo que não é possível saciar, que tem gastrite, sinusite, alergias mil e mais uma série de doenças antigamente privilégios do mundo adulto? Quem é essa criança que tem medo não do monstro ou da bruxa, mas do assaltante do sinal, do sequestro e do desemprego dos pais?

É necessário fazermos uma nova medicina para essa nova criança. Adaptar a Pediatria existente a um novo modelo de paciente, mais exigente e mais problematizado. Amplificar a nossa escuta e ausculta a níveis bem mais altos e ouvir o que a criança pensa, sente, quais são suas dúvidas e inseguranças. Pegá-la pela mão, explicar o que está acontecendo com o seu corpo, ajudá-la a entender o processo de sua doença e confirmar a capacidade infinita de recuperação que nós, os teimosos do mundo, temos para sobreviver.
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Artigo extraído do jornal Boca de Cena nº 7. A autora é pediatra.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Parceiros queridos


Desejo a todos um ótimo Natal!

Um Ano Novo bárbaro!!

E que 2010 seja o melhor ano de nossas vidas!!!

E aproveito, naturalmente, para agradecer a presença de todos neste modesto blog, concebido para ser partilhado com todos aqueles que amam o teatro apaixonadamente.


Mil beijos,

Lionel

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Consumo, logo existo

Maria Clara Gueiros


Há muito tempo a televisão deixou de ser um simples passatempo e se converteu numa forma primordial de lazer de vários segmentos sociais, tornando-se um poderoso veículo de formação de toda sorte de modismos. As novelas, especialmente as das oito da Rede Globo, vêm se transformando numa vitrine, onde é possível ver o que se chama de "identidade nacional". As novelas vêm ensinando seu público - o que se chama de "aldeia global" - a falar, introduzindo neologismos e promovendo outras designações de personagens. O espectador consome desde peças de roupas até nomes próprios, com os quais batizam seus filhos. Um dos exemplos clássicos são as famosas meias coloridas usadas na novela Dancin' days. Até hoje é difícil saber sua marca; elas incorporaram o nome da novela. Essas meias vestiram os "pés nacionais" independente da capacidade econômica e condições climáticas.


MODISMO

A Tv é uma parte do que se chama de indústria cultural, tendo como meta a venda de produtos dos mais variados tipos. O modismo é um fenômeno eminentemente efêmero em que há um lançamento por parte das novelas de peças de roupa, objetos, cortes de cabelo, gírias ou nomes próprios. Alguns objetos já existem previamente à novela, mas somente através dela ganham popularidade e status. Não se trata de merchandising, no qual o produto possui uma marca anterior e tem um espaço vendido na novela. O objeto em questão é anônimo e no decorrer da novela se associa a um personagem. As cópias vendidas no comércio popular têm o mesmo valor simbólico daquele que se vê na tela. Isso torna o objeto acessível a todos; a posse de um objeto é suficiente para que se participe de um mundo.

Para se falar em indústria cultural, deve-se atrelá-la ao que é pregado pela sociedade de consumo, da qual ela é parte integrante. A cultura e as relações humanas são vistas como mercadorias. Com isso, os modismos são efêmeros, os objetos são descartáveis, havendo sempre uma necessidade de novos objetos de consumo a cada novela. A eficácia dos modismos se deve aos apelos que a indústria cultural faz na construção de seu campo, como por exemplo o apelo identitário, a formação de ideais e o papel das ilusões que este campo comporta. Nesse sentido, pode-se até pensar no peso que tem em termos de mercado a tão controvertida escolha de rostos bonitos para protagonizar novelas, tornando-se modelos a serem desejados, seguidos e consequentemente consumidos.

As telenovelas - em especial a das oito da Globo - fazem alusões ao cotidiano e procuram enfatizar o coloquialismo. O esforço é o de integrar as imagens no ambiente das relações íntimas e pessoais do espectador. O rosto televisionado não deve exibir qualidades de excessivo mistério ou charme; deve buscar o efeito televisivo, que é o estabelecimento de relações afetivas com o telespectador.


SEDUÇÃO

Uma questão importante nesse assunto é o discurso baseado na sedução e não na imposição, ou seja, a venda de imagens em última instância é disfarçada. Diferentemente das propagandas de TV, onde o produto é mostrado claramente em sua embalagem e preço, o objeto da novela é integrado a um contexto e glamourizado, passando a fazer parte de uma história acompanhada de emoção. A novela não impõe o produto, ela o oferece por sugestão e fascinação. Ela humaniza o produto, inserindo-o numa rede de relações humanas. É possível encararmos o sistema de consumo e da moda em que a novela se encaixa como uma espécie de linguagem que circula e de certa forma guia os indivíduos; a comunicação se daria através da posse dos objetos.

A partir dessas idéias, podemos pensar a questão da manipulação simbólica de valores que está em jogo neste veículo que é a TV. O que se encontra de um lado é uma sociedade de consumo - ilustrada pela novela - produtora de símbolos e valores e geradora de necessidades. Do outro lado encontramos uma massa de consumidores desses símbolos, ávidos por se intregar e se reconhecer como pertencentes a um grupo social. É como se a posse de um objeto representasse o reconhecimento de si mesmo como parte de um todo. Entra-se em comunhão com a efervescência geral, via Embratel.


SÍMBOLOS

Esse sistema de consumo em que os indivíduos se reconhecem como participantes é regido por uma total mobilidade de valores, ou seja, o que é moda hoje certamente não será daqui a oito meses, quando a novela terminar. Pode-se ver de forma nítida como se lida com esses símbolos televisivos, como se consome esses símbolos. Seu tempo de vida é absolutamente contado. A mobilidade dos valores e sua descartabilidade são o modo pelo qual se dá a relação com a imagem televisiva. Isso vale tanto para os objetos, quanto para os atores que vivem esses personagens e que magnetizam o espectador, fazendo-o consumir revistas em busca de conhecer suas vidas, seus hábitos etc.

Essa forma descartável de se relacionar com as imagens, que o mercado de consumo impõe, faz com que seja sempre necessário haver coisas novas a serem consumidas, para que o mercado esteja sempre vendendo. Dentro desses objetos estão incluídos os atores e atrizes novatos que são jogados no mercado a cada novela e que parecem - com exceções - serem substituídos por outros nas novelas seguintes, de modo que o sistema continue em atividade, tendo sempre um novo produto no ar. Artur da Távola já havia dito que as telenovelas vivem uma fase extremamente mercadológica. O autor de novelas passa a ser responsável por um produto industrial. E o público parece só ter emoções à medida que as consome.


IMAGEM

A questão da relação do homem contemporâneo com a imagem televisiva torna-se cada vez mais um tema a ser pensado. É como se o telespectador procurasse uma imagem de si mesmo pela tela. Introduziu-se na casa um novo espelho - o da TV. A imagem, na era da televisão, se reinstala em carne e osso no pensamento atual. O ícone plasma da vida psíquica e social dos cidadãos. Nessa era, dá-se a vitória do audiovisual sobre o pensamento, do presente sobre a história, e do consumidor sobre o cidadão.

A busca por modelos a serem seguidos, por uma iamgem que esteja em consonância com um grupo, qualquer que seja ele, é própria do ser humano e torna-se uma forma de - em última instância - existir socialmente. Essa peculiaridade humana vem se ajustar perfeitamente à era que vivemos atualmente: a do audiovisual. A eleição por parte da novela de uma imagem a ser vendida traz a possibilidade do espectador, à medida que a consome, sentir-se em harmonia com seu grupo. A imagem que o telespectador que consumir/incorporar aparece como um ideal a ser perseguido, pela via do consumo.

Necessitamos, como duiz Freud, do suporte de uma imagem corporal para existirmos. Daí o encantamento de Narciso ao se ver refletido nas águas de um lago. A "existência" através do consumo é uma forma de nos sustentarmos numa imagem refletida num espelho: o da aldeia global. O fato de toda imagem ser temporária e fugaz, faz com que o ego - sede de nossa imagem e de nossa fantasia - tenha esse mesmo destino. Ao final de cada novela, no qual os modismos se desvanecem juntamente com a imagem a eles associada, é como se o ego, ao partir para mais uma busca de imagem, dissesse: "Esta é mais uma obra de ficção. Qualquer semelhança com fatos, pessoas ou acontecimentos reais terá sido mera coincidência".
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Artigo extraído do jornal "Boca de Cena" nº 10. Maria Clara Gueiros é atriz e Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-Rio
Quero ver o bicho vivo

Eduardo Wotzik


Difícil escrever sobre o teatro em linhas gerais. Mais difícil ainda é escrever sobre o teatro que se faz. Pensar, então...Começo inclusive a ficar desconfiado quando se começa a pensar demais sobre o teatro. Mas sinal. Sinal de que estamos perdendo espaço de fazer. Mais ainda, a teoria começa a dominar a expressão artística e, não tomemos cuidado, ela nos devora.

Tenho dado um bocado de entrevistas sobre o meu trabalho e acabo ficando absolutamente confuso, procurando uma justificativa, e me perco da sensibilidade do todo e tenho que tomar um cuidado redobrado para não poluir o processo de criação com conceitos que nada mais fazem que aprisionar a vida e transformar a cena em um espaço morto. Arte é ser espontâneo. Quando abrir a cortina quero ver o bicho vivo.

Hoje eu acordei esquisito, com vontade de defender um teatro sem firulas, com menos rodeios, que não se desvie das questões essenciais. Um teatro sem subterfúgios, sem representações, que não fuja da essência através da aparência.


SEM MENTIRAS

Estou meio cheio de criatividade, de invenções, de gracinha. De atores infantilizados, de direções infantilizadas, de conteúdos infantilizados, de cenas infantis. O teatro tem de se tornar adulto. Um instante de refleão, de emoção e transformação.

Eu não estou escrevendo isso para agredir quem quer que seja, mesmo porque tudo que digo, digo antes a mim mesmo. Todo dia. Mas sinto que o teatro tem de se reencontrar com sua cidadania. Sua função neste mundo. Através dele podemos elevar o espírito de um povo. Sob pena de, se não o fizermos, padecermos do pior dos males, a miséria. Que os outros meios não o façam, mas no teatro, onde ainda é possível que um homem fale ao seu semelhante, ao vivo, não pode haver mentiras, não pode.

Uma sociedade doente. Um teatro sadio. O teatro a meu ver não deve retratar a realidade e sim recriá-la. Procuro um teatro que seja. Vivo. Onde o homem encontre o homem. De frente. Onde o espectador encontre o olho do ator. Onde o ator se apresente inteiro. Intérprete da criação. Sendo.


ESTRANHA EQUAÇÃO

O teatro vive hoje, salvo exceções, uma estranha equação. O ator finge que faz, o espectador finge que assiste. O espectador finge que gostou, o ator finge que agradece e vão todos embora pra casa felizes e contentes com a certeza do dever cumprido. O teatro há de ser honesto. Há de ser um espaço de recuperação e reavaliação de valores essenciais. De revelar as faltas, de ressentir nossa medida. Um lugar onde o que somos, o que pretendemos ser e o que jamais seremos, possam se encontrar em toda a sua grandeza.

Eu não pretendo defender este ou aquele gênero de teatro. Para mim o que existe é o Teatro. Ou ele acontece ou não. Seja de que gênero for. E, curioso, quando ele acontece todo mundo sabe, todo mundo pecebe, do ator ao guardador de carro. Fora disso temos as intenções, que resultam em experimentações ou pesquisas parciais, que são aqueles espetáculos que apontam um caminho, mas que ainda não se encontram totalmente amadurecidos. Então percebe-se nele um caminho, mas ainda certa inabilidade na realização de suas descobertas.

Levando em conta que vivemos em 1995, final do século, acredito que o teatro tem de acompanhar o desenvolvimento tecnológico por que passa a sensibilidade (os sentidos) de nossos contemporâneos. Assim, busco uma cena que transpareça essa era tecnológica. Uma cena que contenha clareza, síntese, contraste, limpeza, brilho, nitidez, alta definição. Para tanto seus instrumentos (atores, cenografia e tudo que entrar na caixinha mágica) devem procurar se apresentar com esses predicados. Sem ruídos.

Por que estou dizendo tudo isso? Não sei.
Para que estou dizendo tudo isso? Não sei.
Para quem estou dizendo tudo isso? Menos ainda.


SONADO

Acordei sonado. Tive um pesadelo onde fechavam todos os teatros e ninguém sentia falta. Aliás, um ou dois, mas que logo depois...Acordei. Será? Mesmo assim continuo a me fazer perguntas. E feita a pergunta, pronto. Me disseram certa vez que ela só aparece quando já existe a resposta. Então, lá vou eu...

Acho que o teatro está meio fora da tomada. Meio sem jeito, meio pedindo licença. Esse fim de século promete. O mundo não gira mais, o mundo clicka. Então, como alcançar a síntese, como recriar o que acabou de ser e já não é? É. Não é. É. É. Não. Já foi.

Essa resenha não contém a menor coerência, como a vida. Lógica, só a ficcional, a cênica. A realidade...Aí sim, me lembrei do Bergman: "Dirijo teatro porque não consigo dirigir a vida". Eu, para não ver o Jornal Nacional. Há quantos anos digo isso, há quantos anos tem Jornal Nacional. A Renata Sorrah me disse que não. Ela tem tesão. É isso que falta. É incrível como o tesão do Zé Celso não se acaba. E o do Antunes. E o do Domingos. E a minha turma tá numa moleza que só vendo. Cheia de querer, mas com poquíssima necessidade.

Ah, a TV, como deve ser bão! Agora eu vou para a praia, correr, andar de bicicleta, patins, nadar, me perder na multidão, ser em natureza, tirar o mofo. Que gente de teatro se mofa. E se não tem cuidados...
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Artigo extraído do jornal "Boca de Cena" nº 4/1995. Eduardo Wotzik é encenador.
Cérebros abertos,
corações fechados

Bernardo Jablonski


"Educação, para a maioria das pessoas, significa tentar fazer com que a criança venha a se assemelhar a um típico adulto de nossa sociedade. Para mim, educação significa fazer pessoas criativas, mesmo que não sejam muito (...). Mas é preciso educar para fazer inovadores, inventores e não-conformistas (...). Em diversos graus todo indivíduo pode ser criativo".
(J. Piaget)


Uma das boas consequências do boom do teatro para adolescentes foi a forte procura deste segmento pelas aulas de teatro. Como as atividades artísticas dentro da formação escolar "oficial" não são bem vistas, e quando existem, são poucas e sem continuidade, muitos adolescentes vêm procurando os cursos livres que possam fornecer algum tipo de formação teatral.

Esta demanda nos parece bastante útil, tanto no que diz respeito ao fortalecimento da atividade teatral entre nós, como para o aprimoramento do sujeito como um todo. A frase do famoso psicólogo suíço J. Piaget que serve de epígrafe, alerta para o fato de que o ensino tradicional vem pagando um preço bem caro por sua massificação, obviamente necessária e democrática. O problema é que, se é preciso ensinar a muitos em pequenos espaços, os alunos devem permanecer como recipientes passivos, de boca e cérebros abertos, mas de corações fechados. Em um quadro destes, criatividade e emoções são forçosamente relegados a um segundo plano, com o aprimoramento cognitivo se dando às custas de um desenvolvimento pouco adequado das esferas afetivas, morais e até sociais.


BENEFÍCIOS

Neste sentido, atividades artísticas - como o teatro - podem servir preventiva e terapeuticamente para sanar as falhas de nossa educação formal. A prática artística, segundo a psicologia contemporânea, traz diversos benefícios quando se pensa em um amadurecimento mais global e saudável. A começar pelo aspecto emocional: a educação tradicional impede um maior e mais preciso autoconhecimento de nossas emoções.

Como disseram Hodgson e Richards, "do mesmo modo que o corpo, as emoções que sentimos necessitam ser ajustadas e flexíveis. Elas devem ser exercitadas para não corrermos o risco de perder a capacidade de nos exprimirmos sensitivamente. Nossas emoções são uma parte vital de nossa capacidade de construir relações, e se não exercitarmos o controle desse aspecto iremos, provavelmente, estabelecendo maus relacionamentos ou rompendo aqueles que poderiam ser valorizados".


EMPECILHO

Considero essa citação exepcionalmente clara, por retratar com precisão o que NÃO acontece na educação clássica, pela qual demonstrar emoções é ser fraco, "infantil", inconveniente ou simplesmente um empecilho. Como disse o psicólogo social P. Zimbardo, "nossa sociedade ingenuamente acredita que suprimindo as emoções, estaremos elevando a razão". Não estamos. Pelo contrário, estamos nos "neurotizando" e formando sujeitos pela metade.

Mas além de um desenvolvimento mais espontâneo e menos repressor das emoções, as atividades artísticas favorecem igualmente o desenvolvimento da imaginação e da criatividade. A prática teatral costuma estimular também a habilidade de expressão verbal, além de proporcionar - para os adolescentes - um campo para discutir e expressar seus problemas, angústias e preocupações.


CATARSE

É frequente nas aulas a criação de situações dramáticas girando em torno da família, trabalho, sexualidade, críticas sociais, amizade e afeto. De alguma forma, o partilhar em grupo, em um espaço seguro, do que lhes afeta, tem inegavelmente um valor catártico e "calmante", além de servir como um canal não destrutivo, e sim, produtivo de suas inquietações e de como solucioná-las. Desinibição (para os mais tímidos), trabalho em equipe e suas consequências - disciplina, horários, divisão socializada de tarefas e muito suor - são outras das vantagens de uma prática artística regular.

Em resumo, o incentivo ao exercício teatral, por parte de crianças ou de adolescentes, tem inúmeros efeitos benéficos que não podem ser menosprezados, se quisermos uma sociedade mais justa e mais saudável. A vida é curta e a arte é longa. Mas uma vida com arte, é mais longa e é mais viva.
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Artigo extraído do jornal Boca de Cena nº 5/1966. Bernardo Jablonski é Doutor em Psicologia, Professor do Tablado e da PUC-Rio, além de autor, ator, diretor e roteirista.
Cuidado com o Nelson

Luiz Arthur Nunes


Nelson Rodrigues é contraditório até nisso: exaltado como o dramaturgo que botou no palco o corpo e a alma do povo carioca, que criou um diálogo incrivelmente próximo do falar das ruas, que fala de gentes, costumes, lugares, valores genuinamente nossos, este autor é dificílimo de montar. Por mais que os atores se deleitem com o "jeito redondinho" que o texto cabe na boca, por mais que nos identifiquemos com as histórias (até as violências, o sexo degradado, os tabus rompidos, se não os vivemos, sabemos deles, acontecem ao nosso lado), o mais brasileiro de todos os autores do nosso teatro é traiçoeiro, fugidio, ao passar para o palco.

Mil tentativas de solucionar o problema já foram experimentadas. Hoje em dia, desde as montagens de Antunes Filho, a moda é rejeitar o naturalismo e cultivar uma expressão poética, expressionista, uma teatralidade radicalmente anti-ilusionista. Fazer aqueles personagens brasileiros até a medula (mesmo nas peças míticas) trocarem o sotaque do malandro e da suburbana e seus ademares típicos, por uma elocução do texto exaltada, operística e por um gestual igualmente estilizado, ritualístico, ambos sem nenhuma relação com os modelos que os inspiraram. Essa tentação é maior ainda nas chamadas peças míticas, onde a brasilidade está presente sem a menor dúvida, mas de forma atenuada, ao contrário da enxurrada de detalhes de observação social que se encontra no drama realista.


GRITOS E CONTORÇÕES

Na minha opinião, é um equívoco ignorar, contrariar esse aspecto - essencial e inseparável - da obra de Nelson, sob pena dela se desmanchar em nossas mãos. É claro que não basta ficar na mera reprodução da vida real, há que passar por ela e atingir níveis mais profundos de expressão e significação. Mas o realismo rodriguiano não desaparecerá, ele é o enquadramento, a moldura onde se encaixa uma percepção bem menos superficial do real, que mergulha no mito e na poesia.

Os atores, pois, deverão fazer um desenho d'aprés nature de seus personagens, e só depois de firmado isso, poderão investigar camadas mais profundas. As peças míticas são poéticas, fantásticas, absurdas, ritualísticas, o que quiserem. Mas todas essas loucuras são ditas e feitas por figuras que exalam brasilidade. Não fosse por sua aberração e loucura, soariam como minha mãe, ou como as tias do Mauro Rasi.

Então eu me pergunto se, em vez de transformar Senhorinha ou Virginia em figuras de Pina Bausch, não será mais óbvio fazê-las dizer e cometer aquelas barbaridades com a maior naturalidade do mundo, com emoção, pois são passionais, mas sem contorções e principalmente, pelo amor de Deus, sem gritar o tempo todo! Acredito que o horror, o absurdo e a tragédia emergeriam mais intensamente desse choque. Sem falar no humor, presente nessas peças e quase sempre ignorado.


COERÊNCIA

O problema que tenho sentido em muitas das últimas encenações de Nelson é que não se consegue acompanhar a história, acreditar nos personagens, deixar-se envolver por eles. Em certos casos, são de admirar o requinte visual, a riqueza de invenção cênica, mas aí não está presente NR. Mas você poderiam me perguntar: e A vida como ela é, não era cheia de efeitos, de jogos teatrais anti-ilusionistas? Sim, ela tinha tudo isso: máscaras, quadros vivos, sombras, bonecos, deformação, estilização, metaforização etc. etc. Mas todo o desenho corporal foi composto dentro do mais fiel naturalismo, assim como a elocução; e os processos de alteração que sofreram não perderam nunca essa base, esse referencial. Propunha-me um tratamento épico, teatralizado, distanciado na maneira de apresentar, de organizar a ação cênica. Mas essa ação, mesmo nas suas formas mais bizarras, era realista.

Essa exigência de uma âncora no realismo para se permitir o vôo só diz respeito à atuação. Ela não se aplica à cenografia, figurino, luz. A Bonitinha mas ordinária, do Eduardo Wotzik, quase não tinha cenário. Mas os atores causavam uma profunda impressão de verdade. A questão está aí: no ator, na interpretação. Fidelidade ao modelo, podendo, conforme o caso, extrapolar um pouco na caricatura, no exagero (sabemos que Nelson exaltava o ator canastrão).

Ao encenar NR, minha receita é levar os atores a compor com autenticidade as figuras típicas desse universo tão nosso conhecido. A infundir verdade nelas. A partir daí, façamos as loucuras que quisermos, mas cuidando para preservar esse lastro de verdade. Só assim NR baixará no palco.
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Artigo extraído do jornal Boca de Cena nº 3/1995. Luiz Arthur Nunes é diretor teatral e especialista em Nelson Rodrigues.
Boca de Cena

Queridos amigos do blog: esqueci de fornecer algumas informações sobre o jornal "Boca de Cena", do qual já extraí dois artigos e aqui colocarei outros. Esta publicação foi criada por mim, em 1995, para o Sindicato dos Artistas, a pedido do então presidente do SATED, Stepan Nercessian. Na programação visual, tive como parceira Evelyn Grumach, da Eg-Design, e de sua equipe, mesma parceria que estabelecemos a partir do momento em que me foi entregue a editoria da revista Cadernos de Teatro, do Tablado.

Lionel Fischer

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Reflexões
sobre a música e o teatro

Caique Botkay


A partir do momento em que fui convidado para escrever o que me conviesse sobre Teatro, o natural é que eu pensasse imediatamente na música. Afinal, são mais de 20 anos compondo. Como eu não me considero um músico que faz teatro, mas sim um homem de teatro que faz música, neste momento me seria mais interessante falar sobre outros aspectos que me atraem, como a direção, a dramaturgia, os grupos. Mas, afinal, todas essas vertentes se encontram em seu lugar comum: o palco.

Um dos aspectos que sempre me interessou é a capacidade de harmonização entre as mais diversas linguagens artísticas em um mesmo espetáculo. E somente as artes cênicas - teatro, ópera, balé - possibilitam essa convergência em uma mesma direção: o espetáculo vivo. Único, indivisível.

Autores, diretores, atrizes e atores, coreógrafos, cenógrafos, figurinistas, contra-regras, bonequeiros, músicos, iluminadores etc. É uma gama imensa de fatores que une um determinado grupo de pessoas, profissionais ou não, em determinado tempo e lugar. Pode-se dizer que esses artistas se reúnem por algum motivo, dependendo das circunstâncias: disponibilidade, mercado, ideologia, afinidades, narcisismo, afeto...enfim, o espetáculo que resulta de tal encontro toma a dimensão de um grande "acaso", conseqüência lógica das características de cada uma das personalidades envolvidas no projeto, em determinado momento de suas vidas.

Somo a essas características do teatro uma outra consideração que nada tem de original: a comparação com o nosso apaixonante futebol. Mas no caso, desejo ressaltar não os grandes astros, mas os obscuros jogadores que contribuíram decisivamente para, mais do que a conquista de títulos (prêmios), formar equipes que jogavam na mais absoluta harmonia.

Cito exemplos: a linha do Santos bi-campeã mundial tinha dois artistas indispensáveis para que aquele time jogasse tanto, que eram Coutinho e Pepe. O Fluminense de 64 contava com um meio de campo formado por Oldair e Joaquinzinho, que armaram uma autêntica linha de passe contra o Bangu na final. Resultado: 3 x 1 em um jogo inesquecível. Ou, mais recentemente, a eletrizante final de 95, contra o Flamengo, em que Djair, Aylton e Marcio Costa foram os maestros do jogo.

Evidentemente não pretendo aqui desmerecer um Pelé ou um Renato Gaúcho. Mas a minha opinião pessoal é que um grande time, em um jogo emocionante, é aquele em que ninguém é menos importante, cria-se um casamento plural e divino entre todos os integrantes. Nelson Rodrigues dizia, nessas ocasiões, que estava escrito há cinco mil anos que aquilo ia acontecer. Porque tais conjugações harmônicas superam nossa expectativa formal e nos transportam para a emoção do inusitado. Está além do fato humano já conhecido. A criação se renova através desse encontro (ocasional?) de pessoas que transcendem a história.

E tudo isso é para me remeter novamente ao teatro. Os espetáculos que mais me marcaram certamente não foram aqueles em que determinado ator ou efeito de luz, cenográfico ou musical determinaram sua qualidade. Não me atrai tanto o espanto de um efeito genial quanto uma emoção que permeia toda uma peça coesa e íntegra, onde a generosidade da criação e da doação são infinitamente superiores às questões dos aplausos, dos truques e dos egos. Será que todos lembram mesmo o nome do diretor, do fotógrafo, da atriz e do compositor do filme O carteiro e o poeta?

Voltando mais uma vez ao futebol, bom juiz não é o que "aparece", mas o que permite que o jogo flua bem. Afinal, vamos à música. A partir dos pressupostos acima mencionados, penso na integração do universo sonoro criado por Tato Taborda, na montagem de Aderbal Freire-Filho de Senhora dos afogados. Na música de Pianíssimo, de Tim Rescala, que não foi tão comentada como deveria. As canções de Cecília Conde em Hoje é dia de rock, no Teatro Ipanema. Ainda a lembrança de felizes composições de Mauro Perelman para A terra dos meninos pelados. E minha própria música em espetáculos de Ilo Krugli e o Vento Forte, Lucia Coelho e o Navegando, Buza Ferraz e o Pessoal do Cabaré, Bia Lessa e antigo grupo, minha parceria com José Wilker em vários espetáculos, vídeo e TV, e, mais recentemente, o trabalho com André Monteiro, que rendeu espetáculos como A 5ª estação e O conquistador, sendo esta uma peça cujas análises nunca chegaram nem perto do resultado alcançado em cena. São exemplos notáveis de processos resultantes da intensa troca desenvolvida entre os integrantes de um mesmo grupo.

Constato, mais uma vez, que na maioria absoluta dos casos, o aprofundamento de algumas pessoas (grupos) com o imaginário umas das outras, vai depurando forma, estilo, dramaturgia. Enfim, a harmonia, essa palavra tão em falta nas relações humanas e tão fundamental nos desfiles de carnaval, no futebol, na música e no teatro. Uma questão que eu me colocava na grande maioria dos espetáculos que assisti como jurado do Prêmio Shell de Teatro era por que aquelas pessoas estavam montando tais peças. Mesmo que aparentemente "brilhantes". É realmente rara a empatia que vem dos palcos, aquela que nos toca e transforma definitivamente.

A música é apenas uma das peças integrantes de um espetáculo e nem precisa necessariamente aparecer muito. Basta ser coerente, o que já é o bastante. Mas sempre inesperada. Creio ser fundamental que as intervenções sonoras "pensem" o espetáculo, forneçam dados paralelos de interpretação e compreensão - emocionais e intelectuais. Assim como a fala (texto), a música habita o estranho espaço do invisível, do contato pelo ar. E como tal deve ser tratada.

Claro, há os musicais, mas não é deles que estou tratando. Aliás, usa-se o termo "musical" a torto e a direito, e poucos o são. Em um musical, a narração e o desenvolvimento vêm preponderantemente pelas canções. Mas de resto, todas as formas são possíveis, não há fórmulas definitivas na arte: música ao vivo, trilhas gravadas, músicas originais ou não, vozes, parafernálias, silêncios. O que for absolutamente necessário é o que importa. Não há manuais. Aceitam-se trocas.
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Artigo (1966) extraído do jornal Boca de Cena nº 9
Montar ou não os clássicos:
uma questão relevante?

Cláudio Torres Gonzaga


Vamos à clássica questão: montar ou não os clássicos. Embora sabendo que ninguém me perguntou nada, resolvi contribuir com minha modesta opinião. Primeiro, um pequeno resumo de prós e contras. De um lado, estão os que defendem que um texto clássico não pode dar conta das questões modernas, pois só uma dramaturgia contemporânea poderia dizer alguma coisa ao homem contemporâneo.

De outro, os que defendem que o texto realmente clássico atingiu tal posto por sua infinita capacidade de surpreender o Cronos; que seus autores foram geniais o suficiente para levantar questões tão profundamente particulares da alma humana que seus escritos ultrapassam qualquer barreira do tempo.

Normalmente, essa polêmica surge na periferia de uma discussão sobre a ausência de público nas casas de espetáculo. Ou seja: ele iria mais ou menos ao teatro se houvesse mais ou menos textos clássicos ou contemporâneos. Nesse momento, sempre me vem à cabeça uma pergunta que me acompanha há muito: o que o público vai procurar no teatro?

É inegável o fascínio do homem por ouvir e contar histórias, desde a pré-história. Através dos tempos, o ser humano criou diferentes formas de contá-las, começando com as pinturas nas cavernas, passando por poesia, teatro, literatura, quadrinhos, cinema, rádio, televisão, CD-ROM, enfim: diferentes veículos com o mesmo objetivo - contar histórias.

Cada uma dessas formas foi desenvolvendo seus atrativos particulares, de modo que o fruidor divide seu prazer entre conhecer a história propriamente dita e o modo como ela está sendo contada. Tais especificidades foram surgindo não como tentativa de fazer com que um veículo suplantasse os demais, mas como forma de criar alternativas.

Uma história como a de Carmem, por exemplo, ganhou versões para ópera, teatro, dança novela e quadrinhos - para falar das que eu conheço -, sendo que cada uma delas busca seus atrativos específicos. Como o meu veículo é o teatro, minha preocupação é a seguinte: qual é o atrativo específico do teatro? O que só ele pode fazer?

Será que o específico do teatro está em contar novas ou velhas histórias? Modestamente, acho que não. Por isso, montar ou não um clássico me parece uma falsa questão. Até porque, em quase toda discussão sobre se o que se deve fazer no teatro é isto ou aquilo, sempre defendo que o que deve ser feito é isto e aquilo.

O panorama teatral carioca possui provas vivas do que digo. Citando apenas alguns exemplos: Domingos Oliveira vem realizando trabalho exepcional no Teatro do Planetário, trabalhando sempre com damaturgia contemporânea; da mesma forma que Ernesto Piccolo que, em parceria com Rogério Blat, desenvolve produções mais voltadas para o público jovem, conseguindo, também, ótimos resultados.

Em contrapartida, o clássico Macbeth, de William Shakespeare, além de já ter sido transformado em ópera, balé, filme (pelo menos uma meia dúzia), ganhou em 1996 mais três versões: uma da Companhia do Gesto, com seis atores; outra, do TUERJ, com 71 intérpretes; e uma terceira dirigida pelo articulista que vos fala, com somente três atores. As duas primeiras cumpriram boas carreiras em teatros da cidade. A terceira, por enquanto, só pôde ser vista no circuito universitário e em festivais como o de Canela (RS) e João Pessoa (PB), mas em breve estará em temporada no Rio de Janeiro.

Todas, com certeza, têm seus atrativos. Elas não competem entre si, nem tampouco com a chamada dramaturgia contemporânea. São, simplesmente, espetáculos, e, como tais, tentam atrair o público oferecendo aquilo que só o teatro pode dar. Mas...o que seria isso? Lá vem a bendita pergunta que me persegue: o que o público procura no teatro? Qual a sua especificidade? O que só o teatro pode oferecer?

As respostas, cada um de nós, artistas, vem tentando encontrá-las em seus espetáculos. Uma coisa, porém, é certa: quanto mais nos aproximamos delas, mais nos aproximaremos do público e, como num eficiente balcão de Achados e Perdidos, encontraremos, para a nossa clientela, o que ela foi procurar.
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Artigo escrito em 1996 e extraído do jornal Boca de Cena nº 9

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Escola sucateada,
teatro decadente

José Renato


Proponho alguns exercícios de raciocínio. Finalidade: lubrificar o cérebro! Estará a arte teatral em decadência ou as costumeiras queixas serão mais uma crise cíclica, como tantas que o teatro já atravessou? Estará a escola, base educacional do país, sendo sucateada, ou é apenas puro catastrofismo? E existirá alguma coincidência (ou maledicência) entre os dois fatos?

Pra começo de conversa: o que é o teatro?

Antes de mais nada, é o prazer! Prazer de estar junto, de rir junto, de sentir e de pensar junto. Sabemos que cada uma dessas sensações é pessoal, isolada, solitária; mas sabemos, também, que pode ser melhor vivida quando compartilhada! Torna-se uma sensação mais forte, dispõe de mais energia vital. Lembrando o que sabemos da origem do teatro, na Grécia antiga, em cada cerimônia onde as peças de Sófocles, Ésquilo e Eurípedes eram apresentadas, a confraternização de sentimentos motivou a reação da população que identificava sua vida e seus problemas nos temas propostos. E a cultura originária desses eventos alimentou a imaginação dos estudiosos de todos os tempos. E Aristóteles ainda deixou para a posteridade a análise do fazer teatral, cujos comentários filosóficos não se cansam de espantar os interessados em teatro e os amantes da cultura em geral.


TEMPLOS

Com o decorrer dos séculos, o "aprimoramento" do homem criou grandes templos para o exercício dessas cerimônias. Daí, no romantismo, os teatros monumentais da ópera , e mais recentemente, os equipadíssimos teatros para grandes espetáculos musicais, ou modernos estádios cheios de parafernália técnica para apresentações musicais barulhentas etc. Mas o espírito do teatro sempre foi o mesmo: prazer de sentir junto.

Ouvi contar uma história dos Beatles: numa entrevista do grupo, alguém lembrou que, no começo, a técnica de som não devia permitir que fossem ouvidas todas as letras das músicas, e perguntou: "O que toda aquela gente ia fazer lá?". John Lennon respondeu: "Estar junto da gente!". Estar junto! Como esse prazer foi importante para o progresso do homem e seu verdadeiro aprimoramento!


IDÉIA

E para continuar o raciocínio, vamos tirar Sófocles de campo e colocar Sócrates em seu lugar, o professor-precursor. Na reunião de pessoas que Sócrates promovia é que se desenvolveu a idéia inicial de Escola. Como no teatro antigo, os professores desempenham, na sala de aula, uma função tão vital quanto a dos atores no palco. Alimentando a mística do "prazer das reuniões", essas duas instituições, Escola e Teatro buscam - e sempre buscaram desenvolver:

O crescimento da personalidade
O amadurecimento do raciocínio
O conhecimento da língua básica
A capacidade de distinguir valores reais de falsos valores
A experiência vital da descoberta de si mesmo


Pois é, acredito que essas são as características que aproximam, irmanam, o Teatro e a verdadeira Escola. E o que sentimos hoje? Que nenhuma dessas instituições pode ser deixada de lado, nenhum governo pode, impunemente, abrir mão do embasamento e da presença vitalizadora de nenhuma das duas, sob pena de destruir o próprio Estado pelo qual é responsável. Permitir, sob os mais variados pretextos, que a Escola, assim como o Teatro, sejam desvirtuados, e pela inércia de sua atitude, sejam contaminados pela inoperância e pela decadência, devia ser um crime inafiançável para os dirigentes políticos.

Já imaginaram o que significa para um país perceber que suas escolas estão em franca decadência? Quanto tempo mais de sobrevida restará a este país? Seus arquivos de memória serão em curto espaço de tempo nada mais que ruínas irrecuperáveis. E o irremediável é que, junto com a decadência das escolas, vem, inevitavelmente, a decadência das Artes, e portanto, do Teatro.


DIFICULDADES

Estamos lendo nos jornais dos últimos tempos (assim como sentindo na convivência com nossos filhos) que a Escola atravessa um período de enormes dificuldades. Professoras mal pagas, ensino mal administrado, alunos insatisfeitos. Assim como no Teatro: corajosos exemplos de vitalidade, mas pouquíssimo público. Será que a raiz dos problemas dessas duas sacrossantas instituições não será a mesma? O fato delas não fornecerem, a curtíssimo prazo, uma exposição de resultados que valorizariam os seus mentores? Porque resultados brilhantes, a curto prazo, são a meta essencial dos nossos salientes dirigentes.

Quem, nestas linhas, procura desenvolver esses pensamentos, é alguém que convive com o teatro há mais de 50 anos. Já vi vários estilos de governo se sucederem, várias promessas deixarem de ser cumpridas, muitas exaustivas reuniões acontecerem, muitos planos irem por água abaixo. E vi, ao mesmo tempo, a escola do meu tempo se deteriorar e empobrecer. Tive quatro irmãs e um irmão, todos professores, com muito orgulho - naquele tempo. Relembro com prazer, muitas aulas que recebi, ministradas por professoras primárias brilhantes e generosas, tal como fascinantes atrizes de passado não tão remoto. A mesma generosidade das professoras está presente num espetáculo teatral executado com amor e competência.


PARTICIPAÇÃO

Dizem que, hoje em dia, o mercado, a competição, a luta pela vida, exigem um dinamismo a que, talvez, nem o Teatro, nem a Escola se submetam. Será verdade? Por exemplo: desde quando o Teatro necessitava incluir em seus orçamentos uma importância para a publicidade maior do que a necessária para a montagem de todo o espetáculo? Mas a presença da técnica moderna, dos recursos da tecnologia, estão vivos na maioria dos espetáculos em exibição no país. E as Escolas substituem a presença de professores dedicados por vídeos educativos!? Mas na verdade, o que marca a palpitante vida de uma atividade é a participação efetiva dos seres humanos presentes. E pensantes, como os professores e os atores.

Evidentemente, os hábitos evoluem, se transformam; mas os conceitos básicos de formação da cidadania permanecem os mesmos da Grécia antiga. Hoje, porém, os meios de indução então muito mais agressivos; a população pode ser induzida a escolher caminhos que nem sempre são os melhores. Notem bem: quando digo induzida, não pretendo defender nenhuma política autoritária que obrigue as Escolas a só ensinar a versão oficial de determinados assuntos, ou aos Teatros somente encenar determinados espetáculos de autores da moda. O conceito de liberdade na escolha dos caminhos, fundamental na orientação educacional, não passa, absolutamente, pelos escritórios de uma empresa de comunicação, assim como também não está presente em alguns desorientados espetáculos teatrais.


INVASÃO

Até que ponto, portanto, as transformações da vida moderna teriam afetado esse sadio hábito de aprender em conjunto, como se fazia na escola, para aprender, escondido, egoisticamente, na sua salinha de visitas, diante dessa máquina invasora, verdadeiro tanque de guerra que se instalou dentro da casa de cada um, e que dita o comportamento e determina o uso da marca de sabonete, da cueca e da calcinha e, o que é mais triste, do voto que devemos emitir nas próximas eleições? Ninguém leu George Orwell e suas professias? Ninguém percebe que estamos sendo transformados em robôs úteis e, daqui a algum tempo, inúteis?

O cinema, quando a tecnologia invadiu o planeta, também sofreu a mesma investida. Mas os tremendos recursos econômicos americanos criaram atrações que respondiam com as mesmas armas com que estavam sendo atacados; e surgiu o cinema catástrofe. Alguns grandes (e poucos) diretores europeus conseguiram transpor igualmente os obstáculos, graças ao ambiente cultural que os envolvia. E aqui, no Terceiro Mundo? Quem vai poder resistir ao desmonte da nossa soberania cultural, que começa exatamente assim: na telinha, alguém diz, com voz envolvente: "Não saia de casa, não se levante da sua poltrona! É muito perigoso! Não se mexa, porque você pode ser alvo de uma violência inominável! Não se preocupe. Não precisa ler nada. Tudo o que você precisa saber, nós mostraremos para você. Estaremos sempre aqui".


INSEGURANÇA

A quem interessa esse quadro? Quem tem a lucrar com o solapamento de instituições tão importantes para a formação da cidadania e da consciência cultural de um povo? Até quando teremos governantes que só se interessam em ver aumentar os índices da economia globalizada e não no aumento dos índices de desenvolvimento social e cultural? Sabemos que a insegurança existe e deve ser combatida. Mas o combate passa pela vontade política adequada e pela atuação decidida de quem é responsável por ela. A cultura da inteligência e do conhecimento não pode ser substituída pela cultura do medo. A Educação é o caminho fundamental. Ela está presente na verdadeira Escola e no verdadeiro Teatro, instituições que tentam recuperar o prazer de estar juntos, de pensar juntos, de rir e de aprender juntos.
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O presente artigo consta da revista Cadernos de Teatro nº 166/2001. José Renato é diretor teatral e foi um dos fundadores do Teatro Arena.

sábado, 19 de dezembro de 2009

O jogo dramático
e elementos da psicanálise

Richard Courtney


Se colocássemos a questão: "Por que uma menina brinca com suas bonecas ou por que um menino brinca de mocinho e bandido?, um psicanalista responderia que, de uma forma ou de outra, a criança está expressando seu inconsciente. E completaria dizendo que o como e o de quê a criança brinca são reflexos de impulsos inconscientes que, embora basicamente comuns a todos, variam de acordo com o desenvolvimento do inconsciente do indivíduo. Conquanto não fosse novidade, esse foi o conceito de Freud sobre o inconsciente que mais influenciou o pensamento subseqüente. Admirador de Darwin, Freud concebeu-o como evolutivo e biológico: porém, dinâmico, com sua energia retirada dos impulsos instintivos. Foi este o conceito que tanto revolucionou as formas de o homem observar-se a si próprio.


As teorias fundamentais de Freud

Para a compreensão do jogo da criança, os conceitos básicos de Freud sobre o inconsciente são muito importantes. Em princípio, ele postulou dois instintois: autopreservação e a preservação das espécies (o ego e os instintos sexuais). O primeiro leva o homem a buscar o prazer e evitar o sofrimento - este é o "Princípio do Prazer (ou necessidade de buscar a gratificação dos sentidos). Opõe-se ao "Princípio da Realidade", que prevê as conseqüências da busca do mero prazer. De qualquer modo, a Compulsão de Repetição pode ir além dos dois princípios: uma experiência traumática do passado talvez deva ser reativada (pelos sonhos, pelo jogo, ou abertamente) de modo a ser assimilada. O instinto sexual está baseado na libido (energia sexual). Se esta não é satisfeita, pode conduzir a gratificações substitutivas controladas pelo princípio do prazer (como devaneios); ou se a libido é deslocada de uma área, deve, inevitavelmente, produzir seus efeitos em outro lugar qualquer.

Freud postula três estágios de maturação na infância: oral, anal e genital. No estágio oral, a boca é o órgão primário de prazer, e a criança está mentalmente incorporando ou introjetando: ao colocar coisas na boca, ela incorpora o que ama - desejando ser como outra pessoa, se identifica com elas - dessa forma, Freud mostra a primazia da identificação, o primeiro passo para a personificação. Por volta dos 6 meses, quando do aparecimento dos primeiros dentes, a criança pode ficar frustrada se o seio não estiver disponível; neste caso, procura a gratificação pela agressão (mordendo), diz Abraham. Mas, como ainda se identifica com a mãe, engendra a imagem da mãe agressiva que vai comê-la.

O estágio anal (o desejo de expelir agressivamente) Abrahan também o divide em: anal-expulsivo, quando a criança sente prazer com a expulsão sádica; e anal-retentor (coincidindo com o controle do esfíncter, por volta do primeiro ano de vida), quando a criança se desfaz de suas fezes apenas por amor pela pessoa que a cuida.

A fase genital ocorre por volta do terceiro ano de vida, quando a criança centraliza seu interesse no pênis; então, por volta dos 4 anos de idade, aparece o Complexo de Édipo. Sófocles relata como Édipo involuntariamente mata seu pai, casa-se com sua mãe e a seguir pune-se, perfurando-se os olhos.

Freud diz que a criança é sexualmente atraída por sua mãe e ressente-se de seu pai, temendo, então, a punição por seu desejo (castração simbólica). As conseqüências de anormalidades posteriores poderão ser: passividade, encobrindo ódio e medo do pai (posteriormente, de todos os homens que representam autoridade); superafeição e dependência da mãe (a necessidade de ser amado); ou, em reprimindo os desejos pela mãe, pode desenvolver um desejo passivo pelo pai (homossexualidade).

As meninas desenvolvem o Complexo de Electra: o clítoris é a contraparte "inferior" ao pênis e surge a "inveja do pênis". Conseqüentemente, ela pode: ser hostil à mãe (que lhe "negou" um pênis) e portanto desejar o pênis do pai; identificar-se com a mãe e desejar um bebê (substituto do pênis), desenvolvendo uma sexualidade feminina normal; ou, se insistir em seu desejo pelo pênis, tornar-se dominadora e agressiva (desenvolvendo tendências masculinas). Detendo-se o desenvolvimento da libido no estágio oral, anal ou genital, teremos uma fixação; isto aumenta o perigo de que, ao enfrentar problemas mais tarde, a libido possa sofrer uma regressão a esta fixação.

Freud modificou posteriormente sua teoria do instinto. Em 1914, definiu o narcisismo como sendo o amor por si mesmo: o narcisismo primário é natural no bebê, mas o narcisismo secundário, mórbido, pode desenvolver-se na vida posterior se o amor do indivíduo encontrar obstáculos. Em 1920, postulou os instintos de vida e morte: as tendências de preservar e de destruir.

A primeira teoria da personalidade de Freud distinguia: o consciente, ou a consciência do presente; o inconsciente, do qual não estamos habitualmente cônscios; e o pré-consciente que, embora inconsciente no momento, pode ser facilmente evocado - lapsos de fala estão nesta categoria. Foi em 1922 que fez sua famosa divisão entre ego, superego e id. O id é o primitivo sistema de impulsos da criança recém-nascida: exige satisfação imediata, desconhece precauções para assegurar a sobrevivência, é inconsciente, e governado pelo princípio do prazer, não conhece lógica e armazena toda a energia mental. Uma parte do id se separa para formar o ego ou "eu". Inicialmente narcisista, ele se estabelece ao tornar-se

...consciente dos estímulos vindos de fora, armazenando essas experiências (na memória), evitando estímulos excessivos (através da adaptação), e, finalmente, realizando modificações apropriadas no mundo externo em benefício próprio (através da atividade).

Onde o ego está consciente, o superego (aproximadamente equivalente à consciência) está apenas parcialmente consiente. Isto se origina no complexo de Édipo e no medo da punição:

...as atitudes dos pais são adotadas pela personalidade, uma parte da qual (o superego) assume, com relação ao resto, a mesma atitude que os pais tomaram em relação à criança.

O ego desvia as exigência do id e o esforço do superego por mecanismos de defesa:

1) Racionalizando as demandas irracionais do id (acobertando erros).

2) Destruição mágica - a crença de que os feitos irracionais anteriores podem ser "dissipados".

3) Negação - o ego afasta-se de uma realidade muito dolorosa (como em alguma patologia).

4) Introjeção - o ego incorpora o objeto amado e se identifica com ele.

5) Projeção - o ego se desfaz de algo desagradável que pertence ao mundo exterior.

6) Isolamento - separação da emoção e da idéia da experiência (às vezes conduzindo à neurose compulsiva e "dupla personalidade").

7) Formação da reação - fixar uma repressão a um impulso proibido produz tendências opostas, apresentando o ego à sociedade sob uma ótica agradável (como alguém excessivamente puritano).

8) Sublimação - o mecanismo normal e bem-sucedido, canalizando energia para metas substitutivas aceitáveis pela sociedade (a base das artes e trabalho bem-sucedido0).

A criança observa que os atos proibidos levam à punição ou perda do amor materno, e é este relacionamento com a mãe (fundado na identificação) que é a base para as posteriores imitações da criança e suas ligações sócio-emocionais. Embora as ansiedades do adulto sejam decorrentes do ostracismo social e rejeição pela sociedade, estão apoiadas nos resíduos da infância no inconsciente, pois a separação da mãe é o protótipo de todas as ansiedades futuras. O analista procura entender os impulsos do inconsciente e obter a sublimação (com os adultos, através da livre associação e sonhos, e com a criança, através do jogo). Mas, nem os sonhos nem o jogo retratam exatamente as ansiedades: eles operam por meio do simbolismo.

Para Freud, os sonhos são a via principal de acesso para o inconsciente do adulto, uma vez que lidam com os desejos que não podem ser aceitos pelo consciente em estado de vigília. Mas, seu conteúdo manifesto (o que o sonhador percebe) oculta um mais profundo conteúdo latente. Na medida em que o desejo inconsciente foi reprimido, o conteúdo latente não pode ser diretamente captado pelo sonhador; e, assim, o conteúdo manifesto é criado - a realização simbólica do desejo reprimido. Como o jogo serve a um propósito semelhante ao do sonho, também o jogo tem um conteúdo manifesto e um conteúdo latente. Os métodos de criação de símbolos são:

1) Condensação - a personagem de um sonho pode ser a imagem composta de várias pessoas.

2) Deslocamento - elementos emocionais significantes são tornados insignificantes.

3) Representação plástica - o som de uma palavra pode criar a imagem ("uma vista" estimulada pela palavra "revista").

4) Elaboração secundária - o sonhador tenta impor ordem nas imagens.

5) Símbolos fixos - comuns a toda a humanidade, são normalmente de caráter sexual. Os símbolos fixos são pictóricos, e, nos primeiros anos de vida, são comparáveis a cenários. Uma casa representa um corpo: se plana, um homem; com saliências, uma mulher. Os pais são reis e rainhas, os irmãos são pequenos animais, nascimento é água, morte uma viagem. Objetos côncavos e recipientes são símbolos femininos, assim como caracóis, mexilhões, capelas e igrejas; maçãs, pêssegos e laranjas são seios; uma paisagem rochosa, com bosques e água simboliza os órgãos femininos. Os símbolos masculinos são manto, chapéus, ou qualquer objeto longo e pontiagudo (bastão, torre, pistolas, facas etc.); aeroplanos e balões simbolizam ereção, enquanto que o mágico número 3 representa o pênis e os testítuclos. Uma aranha simboliza a mãe agressiva, mas o medo da aranha é medo de incesto; movimentos rítmicos ou violentos (cavalgar, subir escadas) representa intercurso sexual, enquanto dentes caindo indicam temores de castração.

Os símbolos do sonho são o rsultado da experiência infantil, "da relíquias do período pré-histórico (de um a três anos de idade)". E os símbolos que representam ação recente podem perfeitamente ser similares aos que representam ações passadas. De fato, estamos determinados por todo o nosso passado.

Tanto os sonhos quanto o jogo dramático são tentativas do ego de relacionar o id com a realidade, e assim, também no jogo, há símbolos que disfarçam o conteúdo latente. Diz Freud:

O dito de que, no jogo, podemos conhecer o caráter de uma pessoa pode ser admitido, se pudermos acrescentar: "o caráter reprimido".

Porém, o simbolismo do jogo nunca é simples: o "polissimbolismo" acontece porque o entrelaçamento de tendências, conflitos e repressões dão origem a uma variedade de significados. O símbolo, disse Freud, é, em primeiro lugar, um disfarce. Mais tarde, sob a influência e Adler, Silberer e Jung, diria que é uma linguagem, assim como um disfarce. Mas, evidentemente, a compreensão do simbolismo do jogo e, conseqüentemente, o significado inconsciente, inerente ao jogo dramático, é de importância considerável para a educação.
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Artigo extraído do livro Jogo, teatro & pensamento. Editora Perspectiva.