terça-feira, 24 de novembro de 2009

Heiner Müller:
Um espinho no olho

Irene Brietzske


1.

Heiner Müller, 64 anos, alemão, dramaturgo e diretor de teatro. Figura instigante do mundo das artes cênicas. Feio, magro, míope, bebedor de whisky. No mínimo, o maior escritor vivo do teatro alemão. Talvez do mundo inteiro. Dono de uma obra poderosa, magistral e controvertida. Um nome que causa impacto cada vez que pronunciado. Uma espécie de vampiro, que suga o sangue do passado e retira dos clássicos a sua substância: Sófocles, Shakespeare, Kleist, Lessing, Laclos.

J.G. Ballard chamou Heiner Müller de "um canibal, comedor de clássicos, que ataca o coração da decadência cultural". Sua obra é uma desmontagem e uma desconstrução respeitosa da cultura ocidental. Em sua peça Quartett, uma releitura de Ligações perigosas, de Laclos, a certa altura o personagem Valmont diz: "Veja que nos restou conviver com o refugo dos nossos anos. Pirâmides de imundície. Até que alguém rebente a fita da linha de chegada".

O teatro de Heiner Müller é o do fim do milênio. Apocalíptico, arrasador, aniquilador. Ele toma por empréstimo personagens do passado da cultura ocidental e os expõe à luminosidade crua e cáustica do presente e do futuro. Acredita que nossa sociedade sofre de um defeito de canalização e afirma que uma das funções da arte hoje é a reciclagem dos mortos. "Para conhecê-los é preciso aspirá-los para em seguida extirpar suas partículas vivas".

As imagens de Heiner Müller são compactadas e se encravam como o osso fraturado transpassa a carne. São imagens-palavras que expõem o nervo ótico. "Um espinho no olho". (Heiner Müller sobre Pina Bausch).


2.

Heiner Müller nasceu em Eppendorf, na Saxônia, em 1929, de pai empregado, membro do Partido Socialista, e mãe operária da indústria têxtil. Em 1933 seu pai foi preso pelos nazistas e em 1941 enviado à França num batalhão disciplinar. Em 1944 Heiner Müller foi recrutado para serviços do Reich e em seguida passou três dias como prisioneiro dos americanos. Em 1951 foi viver em Berlim trabalhando como jornalista e colaborador do Sindicato dos Escritores.

Em 19556, ano da morte de Brecht, Heiner Müller publicou seus primeiros escritos breves, com o título A cruz de ferro. Em 1958 foi contratado como colaborador do Teatro Maximo Gorki, de Berlim. Sua mulher, Inge Müller, foi a grande colaboradora desta época. Em 1959 os dois receberam o prêmio "Heinrich Mann" pela peça Der Lohndrücker.

Em 1966 Inge se suicidou, marcando substancialmente a obra do marido, tornando-a mais amarga e niilista. Entre 1970 e 1976, Heiner Müller foi conselheiro artístico do Teatro Berliner Ensemble, em Berlim Oriental. Em 1971 a publicação de sua versão de Macbeth provocou um ataque veemente contra seu "pessimismo histórico" em toda a Alemanha Oriental.

Em 1975 viajou aos Estados Unidos e junto com Robert Wilson encenou sua peça Mauser em Austin, no Texas. Desde 1958 sua obra é encenada e publicada na Alemanha e desde 1969 no mundo inteiro. Em 1988, em Berlim Oriental, houve um grande festival de teatro e um colóquio internacional consagrados à sua obra.


3.

As principais peças de Heiner Müller são:

Der Lohndrücker (1957)

Filocteto (1958-64), baseada em Sófocles

Édipo Tirano (1965-66), baseada em Sófocles

Prometeu (1967-68), baseada em Ésquilo

Mauser (1970)

Germania Morte em Berlim (1971)

Macbeht (1971), baseada em Shakespeare

Hamletmachine (1978), baseada em Shakespeare

A missão (1978-9), baseada em Anna Seghers

Quartett (1980), baseada em Laclos

Medea-Material (1982), baseada em Eurípedes

Wolokolmsker Chaussée (1984)

Descrição de uma viagem (1984)

A ferida Woyzeck (1985), baseada em Büchner


4.

O teatro de Hainer Müller ultrapassou o drama. E esta é a grande ruptura do fim do século. O que ele escreve não pode mais ser chamado de "peça dramática", mas sim de "peça teatral". Foi rompida a barreira condicionante do texto convencional que conhecíamos até então. O texto dramático, com suas indicações, distribuição de falas, ambientação, conflitos, relação dramática explícita ou implícita, determinam a encenação, condicionam o diretor, oferecem-lhe uma liberdade vigiada. Müller, ao contrário, nos oferece um material aberto. Aliás, ele próprio prefere chamar suas peças de "materiais teatrais". E isto tem azucrinado os conservadores. Sentem-se perdidos frente à grande abertura que sua obra propõe.

O que às vezes acontece mundo afora com aqueles que trabalham com suas peças é que as pessoas buscam uma interpretação literária e não teatral de suas idéias. Consideram suas peças tomadas de posição e não um material aberto a partir do qual deverá se realizar a criação do espetáculo. A leitura da obra de Heiner Müller não é uma experiência ordinária. As peças são mutáveis, abertas e inexoráveis ao mesmo tempo. Variam os ângulos, mas para melhor atacar. Para desmascarar e aniquilar cada mentira.

Somos obrigados a desistir de "interpretar" suas peças. Para melhor encená-las é preciso encontrar a posição exata de se relacionar com o texto. Müller não recompõe as obras que reescreve. Ele as decompõe, corta e retalha como um cirurgião. Seu enfoque não é crítico, é cirúrgico. Quartett, por exemplo, é uma variação irônica sobre a visão pós-moderna do fim do mundo, inspirada na decadência aristocrática do século XVIII. Assim ele retorna a Sófocles, Shakespeare, Laclos e os incorpora à sua escritura. Talvez isto não seja extamente o retorno aos mortos, mas é incontestavelmente o retorno de alguma coisa.


5.

Em Descrição de uma imagem não há indicações cênicas, nenhuma ação, nenhum personagem ou papel, não há drama. A diferença entre texto dramático e texto teatral é um dado prévio indispensável à análise dos textos recentes de Heiner Müller. E este é um texto de 1984. Müller tem uma profunda admiração por dois encenadores contemporâneos: Pina Bausch e Robert Wilson. Com a primeira nunca trabalhou; com o segundo vem trabalhando desde 1975.

A influência estética de Wilson sobre os últimos textos de Heiner Müller é flagrante. A tentativa e aproximação do quadro animado: o teatro sem drama de Wilson corresponde à estética pós-dramática de Müller.

Em Descrição de uma viagem ele faz desaparecer as últimas concessões que vinha conferindo ao drama (monólogo, discurso dirigido, ação). Adotando o gênero descritivo, o autor descobriu uma possibilidade nova: não se trata de um monólogo face a uma imagem, mas de um encontro tenso e surpreendente entre um olhar e uma imagem.

O olhar vê e descreve uma paisagem "nem bem uma estepe, nem bem uma savana, o céu um azul-da-Prússia". A paisagem é repleta de imagens de mortos, esqueletos, carne podre, restos, signos de uma violência anterior. Um homem-caçador, um pássaro (abutre com cabeça de pavão) e uma mulhe que brota da terra, de uma tumba lamacenta, para encontrar o homem que vai assassiná-la para que ela possa ressuscitar, remorrer, ressuscitar. Mais uma vez Shakespeare: os mortos não são mortos e continuam a agir como "ressuscitados". Assim segue o erro histórico acumulado, os vivos caregando o fardo do erro crasso cometido no passado. Terão os sobreviventes consciência disso?


6.

Hoje Heinner Müller lamenta a queda do Muro de Berlim e o fim da antiga República Democrática Alemã e, por isso, tem sido muito criticado e atacado. Sempre achou que primeiramente deveria ter sido alcançada uma confederação entre os dois Estados alemães para, em seguida, através de uma transmissão lenta, chegar à reunificação.

Em 1992 lançou sua autobiografia Guerra sem batalhas: vida entre duas ditaduras, onde narra sua trajetória entre as ditaduras nazista e comunista. Atualmente está instalado em Bayreuth, uma pequena cidade bávara onde está encenando a ópera Tristão e Isolda, de Wagner. Casado pela quarta vez com a fotógrafa Brigitte Mayer, confessa-se fascinado com a experiência de ser pai, novamente, da menina Anna, de seis meses. Seu próximo trabalho teatral já está em elaboração. Será um texto cujos personagens principais são Hitler e Stalin, ainda sem título. A ação começará na Segunda Guerra e vai terminar com a queda do Muro de Berlim.


7.

Os críticos o chamam de "reinventor de Brecht" ou "especialista da escuridão". Ele diz que buscou e sempre buscará "um novo caminho". Hoje Heiner Müller é famoso no mundo inteiro pela linguagem arrebatada e brutal de suas peças, que chegam ao espectador como um soco no estômago. Suas peças falam sempre de sangue, sexo e morte e por sobre elas paira sua terrível definição: "O homem é o alimento dos cemitérios".
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Artigo extraído da revista Cadernos de Teatro nº 136/1994

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