quinta-feira, 22 de outubro de 2009

"A arte é um delito"

(A entrevista que se segue foi concedida por Tadeuz Kantor (1915-1990) a Irene Maslinka. Mais informações sobre o notável e polêmico encenador polonês podem ser obtidas neste blog, na seção "Personalidades")


I.M - Abril de 1990 marcou seu 75º aniversário. O senhor é 15 anos mais jovem que nosso século em declínio. Considera nossa époa um período de decadência?

T.K - Ao meu ver, é preciso esquecer este termo tipicamente marxista: "uma arte em declínio", "uma arte decadente". Tal arte não existe. Para mim as épocas decadentes produziram na arte as maiores obras-primas. Sempre foi assim. Era então que se fazia o maior número de descobertas.

I.M - Não tomando como algo negativo, este termo "decadente" teria algum sentido?

T.K - O tempo na arte é muito relativo. Do ponto de vista, por exemplo, do existencialismo é possível dizer que o naturalismo do século XIX provinha da decadência; ora, agora que este naturalismo renasce no novo realismo não se sabe mais o que é decadente. O que quer que seja, existe em meu caráter, em minha natureza uma queda pelo declínio, a decadência, o mal, a tragédia, o desvio, o ciúme, e é esta inclinação a causa da arte. Não fui eu, mas Bataille quem escreveu que a arte é uma contravenção, um delito relativo às normas sociais. De fora da vida social, é exatamente por isso que eu digo: não significa que eu seja um niilista ou um anarquista.

I.M - Mas o senhor não é menos contra qualquer forma de autoridade.

T.K - A noção de arte é contrária a de qualquer autoridade, de qualquer poder. Em um tratado sobre o poder eu teria escrito, antes de mais nada, que os únicos competentes e capazes de assumir esta noção são os artistas. Mas é difícil imaginar homens poderosos que tivessem exercido seu poder em nome da arte.

I.M - O senhor quer dizer que só o universo artístico permite ser realmente livre?

T.K - O poder dos artistas se exerce na esfera espiritual, mas comparado ao poder material, dotado de todos os meios possíveis, ele se revela bastante fraco. É isso o que me torna um tanto pessimista.

I.M - Se o impacto da arte é pouco perceptível, isso se deve talvez ao seu efeito atrasado, e, ainda assim, muito marcante?

T.K - Não. A questão não está aí. Eu não sou sociólogo, mas consegui formular uma idéia levando em consideração meu próprio caso. Eu acredito ter de algum modo criado alguma coisa, digamos meu teatro, que, em toda parte, alcança um sucesso arrebatador. Mas como efeito é zero...

I.M - O senhor sempre se refere ao início do nosso século e aos anos 20. A fé daquela época no poder da arte viu se opor a ela um cruel desmentido. Nem os ardentes manifestos dos artistas, nem suas obras previram a carnificina dos povos: a Primeira, e depois, a Segunda Guerra Mundial.

T.K - Nada impede que aquela fé fosse, na época, real. Quando o maior pintor russo do século XX, Malevitch, veio a bordo de um trem especial a Berlim, no Bauhaus, o acolhimento com que ele foi recebido era comparável ao que hoje em dia se recebe um Gorbatchev ou um Bush.

I.M - Parece que o senhor também é acolhido como um ídolo no estrangeiro...

T.K - Isto, por exemplo! Mas de que adianta?! Hoje em dia, é unicamente uma questão de público. Sabe, minha intenção nunca é a de salvar o mundo com minha obra. Eu me interesso em extorquir de mim mesmo o que me atormenta no fundo do meu eu, e nada mais. Disposto a descobrir mais tarde que isto exalta as pessoas ou pode fazê-las mudar de opinião. Mas no momento em que a obra se esboça, eu só trabalho para mim mesmo. Mente aquele que afirma fazer obra de criação artística para a sociedade.

I.M - No teatro, o senhor deve, no entanto, atrair imediatamente o público. Sem dúvida o senhor pensa nisso, quando prepara seus espetáculos?

T.K - Não. Três vezes, não. Eu só procuro resolver meus próprios problemas. Como todo homem, eu sou levado a isso, e é somente quanto esta necessidade se afirma com um vigor particular, que se adquire uma força colossal e se chega a realizações muito válidas quando se é artista.

I.M - Em "Eu nunca mais voltarei", o senhor diz: "É então que nasce neste lixo de homem uma força sagrada. É infelicidade, depois, nesta força".

T.K - Eu sei disto por minha própria experiência. Se começo alguma coisa na arte é porque tenho que resolver um problema que é meu. Se este se resolve em mim mesmo sozinho, isto me faz perder de chofre a força necesária para terminar o trabalho. O que decide a criação de uma obra grande ou medíocre, é a criação do debate interior.

I.M - O senhor é profundamente apegado à formação artística dos anos 20.

T.K - O que me distingue dos adeptos do cubismo, da arte abstrata, do construtivismo, do dadaísmo etc., é que eu não tenho confiança na eficácia formal da minha arte. Daí a definição que formulei, e devo dizer que a despeito da natureza espontânea e fortuita da criação, dou importância às definições: eu disse, pois, que a obra mais válida se concebe sempre a partir de necessidades individuais. Não universais, não coletivas, não sociais.

I.M - No entanto, o senhor é um homem que conseguiu atingir um sucesso mundial. Como se deu isso? Que condições foram cumpridas? Uma resposta existe: "eu sou um grande artista", mas foi o individualismo que favoreceu sua comunicação e entendimento com o mundo? Pois é possível, no seu caso, falar de entendimento: o mundo inteiro quer assistir aos seus espetáculos.

T.K - Eu não sei. E acredito que todo artista autêntico lhe dará a mesma resposta e lhe dirá sempre: eu ignoro a que se deve o fato de eu ter me entendido com o mundo inteiro, quando era unicamente comigo que eu me entendia constantemente.

I.M - Seu sucesso mundial só aconteceu, entretanto, em um momento. O senhor se perguntou naquele momento o por quê do seu sucesso?

T.K - Não. Nunca. O sucesso veio? Melhor, ponto final. Sabe, talvez isso se deva à minha natureza profunda, mas eu não tenho em absoluto a ambição de fazer deste sucesso um método de salvação do mundo. Diferentemente de alguns artistas, que qualifico de "homens de visão".

I.M - Por exemplo?

T.K - Não, isso eu não lhe direi...(risos). Também houve alguns deles no passado...

I.M - O mundo de hoje está mais unido do que nunca e a situação do artista, este "homem diferente", é também diferente do que foi outrora. O paradoxo que diz que só a expressão individual tem chance de encontrar o caminho dos outros, encontra-se acentuada aí?

T.K - De tanto me perguntar porque eu insisto tanto no individual, eu percebo também causas muito concretas. Sebe-se que todas as tendências que procuraram escrever a atividade artística na História e na ação social, fracassaram. Isto significa que esta atitude continha uma parte falsa. Mas ao mesmo tempo eu acho que não tem fundamento justificar nem verificar programas artísticos com seu fracasso ou vitória social. Isso não tem fundamento, mas nós vivemos em sociedade, nós somos homens, e acima de tudo formados pelo racionalismo. O raciocínio é o seguinte: se as idéias de construtivismo, de arte abstrata, de supremacia russa estavam ligadas ao movimento revolucionário, e este movimento fracassou, estas correntes artísticas fracassaram com ele. Nos anos 1938-1940 eu ligava indissoluvelmente o construtivismo à revolução. Os próprios construtivistas declaravam, aliás, que em um momento a arte construtivista cessaria de existir, de tanto se fundir à vida: era o ideal ao qual eles aspiravam. Se a realidade se inscreve em falso contra um termo deste raciocínio, perde-se a confiança também no outro. E é isto o que faz com que, apesar de compreender a arte abstrata e depositar nela os valores de minha confiança, ela torna-se, subconscientemente, um pouco suspeita.Eu até escrevi um dia que a arte abstrata era uma corrente artística que correspondia ao poder totalitário.

I.M - A arte abstrata corresponde ao poder totalitário? Não seria o realismo socialista?

T.K - Existe aí um fundo de verdade, pois os abstratos também faziam proibições àqueles que não os seguiam, e os tratavam de maneira negligente. Era o totalitarismo e pode-se dizer que houve um terror de arte abstrata, um terror de surrealismo, de cubismo etc. Eu mesmo senti nos anos 70, quando, após meu período de arte abstrata e "informal", passei a pintar personagens, telas figurativas. Meus colegas então me acusaram de reacionário e de traidor.

I.M - Um vocabulário bastante sugestivo.

T.K - Ah, sim, eram acusações muito graves. Por ocasião de uma de minhas conferências, um senhor gritou: "E quais eram as suas idéias cinco anos atrás?". Eu lhe rspondi: "Isso lhe interessa?". A arte não é a política para me perguntarem como posso ser assim agora, se eu era outro há cinco anos atrás. Assim toda arte abstrata é herdeira do terrorismo. É por isso que, em 1970, decidi deixar o campo de batalha da vanguarda.

I.M - Da vanguarda no sentido estrito, histórico, do termo?

T.K - O que era da vanguarda no início do nosso século, nos anos 20, 30 e mesmo 40, depois se tornou uma moda, uma maneira de viver que leva à notoriedade e ao sucesso comercial. Eu tinha então escrito no manifesto "Teatro da Morte" que eu deixava este caminho oficial e universal e começava a procurar meu próprio caminho.
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Entrevista extraída, e aqui um pouco reduzida, de Theatre in Polland. I. 1991. Tradução de Elisa Duarte. Uma colaboração do Curso de Tradução do Departamento de Letras da PUC-Rio. A íntegra da entrevista está publicada na Revista Cadernos de Teatro nº 127/1991.

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