quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Toda unanimidade é...

Lionel Fischer


Os que conhecem a obra e os pensamentos de Nelson Rodrigues sabem a palavra que encerra o título acima: burra. Com isto nosso maior dramaturgo quis dizer apenas que, para o bem ou para o mal, as divergências são mais salutares do que inquestionáveis concordâncias. E isto será ilustrado a seguir com a opinião de três renomados críticos ingleses a respeito da versão de "Hamlet" feita por Ingmar Bergman, exibida no idioma sueco na Inglaterra, em 1987 - e não custa nada lembrar que Bergman é tido como um gênio, tanto do teatro como do cinema.

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NEW STATESMAN
26/06/87
Victoria Radin

Sem muita vontade, saí para ver Hamlet, de Ingmar Bergman: Bergman mais Hamlet em sueco deve ser igual à melancolia, meia-luz e supra-intelectualização. Absolutamente. A áspera vivacidade de Fanny e Alexander, último filme de Bergman, está presente na peça. Na verdade, sua versão - e é uma versão, pois ele toma grandes liberdades - poderia intitular-se "Ofélia e Hamlet", uma vez que destina o mesmo peso à jovem que, sozinha entre Ofélias, realmente me assustou. Quando não está falando, ela aparece ao fundo da cena, mesmo após sua própria morte, como uma silenciosa testemunha dos acontecimentos a que assistimos. Ela - e não Hamlet - é o centro moral da peça.

Bergman faz uma pequena brincadeira antes de a peça começar. Uma cortina vermelha sobe, seguida por outras duas. A música retinindo vem ganhando espaço e somos lembrados de que o teatro é um jogo sobre a ilusão e que estamos a ponto de assistir a uma peça que trata diretamente deste tema. Depois disso há outros lembretes: Gertrudes veste Ofélia para a cena do convento e muitas vezes o rosto de Hamlet se reveste de uma única expressão. Mas dentro desta concepção a vida é direta, apaixonada, impetuosa, semelhante mesmo a um desenho animado. O palco é esvaziado até a parede do fundo e cercado por um falso arco preto de proscênio.

Nesse retângulo maravilhosamente iluminado e claro - uma moldura de cinema - Bergman faz belas cenas com seus atores, frequentemente colocados de perfil. As conexões entre eles emergem claramente. Embora repleto de idéias e ilusões, o significado básico da peça é tão transparente que uma criança a entenderia. Talvez precisemos assistir a nossos clássicos em sueco para sermos capazes verdadeiramente de comprendê-los. Talvez o que realmente precisemos seja ter falantes de outra língua que não o inglês envolvidos com eles.

Cláudio e Gertrudes, em sua primeira cena, andam de lá para cá no palco vestidos com roupas em tom de açafrão, como dois seguidores (particularmente insossos) do Rajneeh, e passam em seguida a copular em posição de cachorro. Uma fileira de juízes mascarados de vestes vermelhas os apalude. Eles são a inserção sobrenatural de Bergman, um grupo silencioso e pecador de imagens da autoridade cujas feições desintegradas constituem um constante lembrete de que há algo de imensamente podre no reino da Dinamarca. E as coisas vão de podre a pior.

Quando Fortimbrás entra para avaliar a última matança, não vem como salvador mas como soldado de uma tropa de ataque cercado por uma polícia corrupta e por uma equipe de televisão para gravar seu discurso, que é feito em uma linguagem bombástica e insensata ao som de rock pauleira. Diante das confusões, Bergman parece estar dizendo, surge o novo barbarismo. Isso nos faz retornar ao mundo atual e dá o único tom de real pessimismo: a peça é também ousada, animada e - quando alguém se lembra que Bergman agora está próximo dos 70 anos - jovem. Hamlet é sobretudo uma peça de adolescentes em sua quintessência.

Há outras brincadeiras: um coveiro que fala com dois bobos da corte que estão tocando música e acha um verme muito comprido no crânio de Yorick. Menos uma brincadeira para seu próprio bem é a infidelidade bêbada e violenta de Cláudio antes de começar suas orações com uma Rainha-atriz vestida como Gertrudes. A transformação de Oféia, intepretada com extraordinária força por Pernilla Ostergren, é exepcional. Inicialmente uma garota gorducha e despreocupada, obstinadamente apaixonada por Hamlet, ela se transforma em uma Lilith feia, com botas de soldado, que corta seu próprio cabelo com uma tesoura de poda e distribui unhas ao invés de flores antes de se afogar.

Hamlet é violento, braviamente vivo e, sem dúvida, um líder natural entre os estudantes de Wittenberg. Vestido com camisa pólo preta, canos de esgoto e óculos Raiban, Peter Stormare faz sua primeira entrada dando topadas em uma cadeira e então joga-se nela com exagerada raiva. Seu estilo, em meio a trajes que sugerem todas as épocas exceto a atual, coloca-o como profundamente moderno - até mesmo pós-moderno. Você sente que ele ficaria au fait com Lacan e Derrida. Raiva, náusea e uma repulsa total às convenções o levam para a frente; e o Sotmare alto, com pernas de cegonha, é sempre interessante de ser visto: como uma versão melhorada, infinitamente mais sensual, das pessoas do século XX que conhecemos. Achei-o um tanto peocupado consigo mesmo, mas até isso é também familiar. Quando Fortimbrás empurra seu corpo em meio à marcha de seus seguidores, perdemos qualquer resquício que ainda pudesse restar do humanismo ocidental.


PUNCH
24/06/87
Sheridan Morley

O Hamlet de Ingmar Bergman, que veio de Estocolmo para o Teatro Nacional em uma breve visita, foi um nítido lembrete de que, após 70 produções para o teatro em 40 anos, ele continua sendo o mais bombástico e interessante dos diretores, apesar de mais reconhecido neste país por seus filmes do que por suas peças teatrais. Abrindo com um círculo de refletores sobre um palco vazio (em nítido contraste com os escessos cênicos dos últimos visitantes do Teatro Nacional), esta é uma produção de constantes surpresas, algumas mais bem acolhidas do que outras.

Até para aqueles entre os ingleses que não sabem nada de sueco, ficou claro que Bergman fez coisas drásticas com um texto que evidentemente é visto como mais modificável na Escandinávia do que por aqui: falas inteiras desapareceram e os personagens têm o hábito de aparecer em cenas onde nunca foram vistos antes. A própria Ofélia, em uma atuação obsessiva de Pernilla Ostergren, tende a vagar pelo palco como Alice no País das Maravilhas, chegando no meio da cena entre Hamlet e Gertrudes no armário ou atacando seu cabelo com uma tesoura, muito antes de qualquer cena de loucura já escrita por Shakespeare.

Novamente, então, o fantasma do pai de Hamlet reaparece, pensativo, no final da peça, para ajudar seu filho a matar Laertes, enquanto o exército de Fortimbrás, cuja primeira aparição no palco sugeria um regresso vitorioso da Primeira Guerra Mundial, retorna ao final como um moderno grupo de ataque, munido de sua própria unidade de televisão para a gravação do banho de sangue final. O próprio Hamlet é representado por Peter Stormare usando a maior parte do tempo óculos escuros e uma capa de chuva preta, o qual parece ser o que eles têm em Estocolmo em lugar de James Dean, enquanto Ulf Johanson é responsável por uma das mais intrigantes atuações da noite, como um solitário coveiro envolvido com uma tradição de salão de bailes, que aos britânicos lembraria George Robey em sua melhor forma.

Apesar de todas as suas aberrações, essa peça ainda é um Hamlet de constante fascinação: a carne muito, muito sólida, está claramente se derretendo por toda a corte, e, em termos cinematográficos, o que temos aqui é mais um tratamento do original do que uma interpretação fiel dele. Nem todas as liberdades são perdoáveis, e algumas são apenas coerentes, mas há momentos tão brilhantes (Ofélia distribuindo unhas desbotadas para a corte, convencida em sua loucura de que está colhendo rosmarinhos para ser lembrada, ou o tiro fora de cena que revela que Fortimbrás matou Horácio para facilitar sua própria sucessão final ao trono) que ficamos mais do que inclinados a perdoar parte do caos resultante.


INDEPENDENT
12/06/87
Adam Mars-Jones

Assistir a Hamlet representado em sueco dá uma idéia do que um estudante marroquino, por exemplo, pode sentir ao assistir atores enviados pelo Conselho Britânico a representar cenas de Shakespeare: um senso de grandeza e exclusão. Felizmente, a produção de Ingmar Bergman logo dissipa tal impessão. Apesar de Bergman guardar alguns de seus efeitos mais originais para depois do intervalo, e a interferência da língua sueca retardar a descoberta, fica claro que sua visão da peça é de uma impressionante crueldade - crueldade elaborada, crueldade construída camada por camada, mas assim mesmo crueldade.

A noite começa de forma promissora, com apenas uma lâmpada no alto como a única luz, e com uma representação naturalística de Horácio e dos Oficiais. O fantasma faz seu apelo na beira do círculo de luz, lutando para avançar, lutando em vão ao longo da beira do círculo. O público tem a primeira indicação do que está por vir quando Gertrudes e Cláudio entram, ou melhor, jogam-se no chão, no meio de um assalto de uma luta sexual; enquanto o usurpador começa a comer a rainha, as luzes sobem para a corte, representada por figuras vestidas de escarlate no fundo do palco, as quais usam perucas e luvas bermelhas como que para assemelharem-se a juízes e cardeais, com seus rostos cobertos por máscaras desfigurantes sem feições. Os cortesãos avançam ritualisticamente, batendo palmas de uma forma estilizada e uniforme.

É comum para Hamlet ser representado usando trajes modernos (neste caso, capas de chuva pretas, camisas pólo e calças, botas pretas de camurça) enquanto a corte veste-se de acordo com a época, apesar de ser um pouco estranho Hamlet usar óculos escuros e Horário pincenez, considerando serem eles tão amigos. Mas este Hamlet, apesar de entrar com cabelos desgrenhados e assumir uma postura rebelde, logo afasta qualquer sugestão de frieza moderna. Peter Stormare se contorce e tem ânsias e vômito, cuspindo um esguicho de líquido toda a vez que abre a boca (quando ele de fato cospe no rosto de Ofélia, parece um prodígio que ela perceba). Trata-se de uma atuação selvagem, embora ajustada a seu modo e, em certas ocasiões, comovedora.

No primeiro solilóquio, Bergman mantém outros personagens na penumbra enquanto Hamlet declama. É uma maneira eficaz de equilibrar o furor do príncipe, mas à medida que a peça avança. Bergman parece desenvolver um tipo de agorafobia teatral, um temor de palcos vazios. Sua Ofélia (Pernilla Ostergren) é tranquilizadora à primeira vista, troncuda e aparentemente inafogável, mas é tratada como um caso clínico de abuso sexual. Hamlet é mais do que bruto com ela (há estupradores menos brutos), e ela permanece no palco, traumatizada, depois que sua cena acaba. Consequentemente, ela testemunha o assassinato de seu pai; e ainda permanece no palco, cortanto autisticamente seu cabelo com uma tesoura, e puxando seu xale sobre o rosto (para nos lembrar, concluo, dos conventos). Ela faz uma aparição até mesmo após seu enterro.

Polonius é particularmente perdido, posto que Ulf Johanson tem neste papel uma atuação gloriosamente engraçada e minuciosa. Não parece justo que a corte o retire do palco quando ela não tem esse efeito sobre Ofélia. O Fantasma é igualmente um sobrevivente, e fica por aqui tempo suficiente para segurar Cláudio no último ato, para que Hamlet pudesse apunhalá-lo. Johanson fornece um outro sopro de ar fresco como o Coveiro, mas àquela altura, qualquer perspectiva de equilíbrio há muito já se foi. Hamlet pesca a caveira de Yorick com a ponta de um fêmur, coloca-a entre as pernas para imitar Yorick o carregando nas costas, e põe seu boné de mainheiro azul sobre o crânio da caveira.

Ainda é um choque quandoi o exército de Fortimbrás entra ao estilo da SAS, armado com metralhadoras e uma caixa de som borbardeando música de discoteca. Por um momento parece que a festa do elenco invadiu a peça, mas então os soldados atiram em Horácio e começam a ameaçar o público tanto com as armas quanto com a música. Um final adequadamente grotesco para uma produção de prodigiosos erros de cálculo e excessos.
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Artigo extraído de London Theatre Record, por cortesia do Conselho Britânico. Tradução de Cláudia Romero. Colaboração do Curso de Tradução do Departamento de Letras da PUC-RJ. Este artigo está publicado na revista Cadernos de Teatro nº 126/1991, edição já esgotada.

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