terça-feira, 22 de setembro de 2009

A nova técnica da
arte de representar

Bertolt Brecht


Tentarei descrever uma técnica de representação utilizada para distanciar os acontecimentos apresentados ao espectador. O objetivo desta técnica do efeito de distanciamento é conferir ao espectador uma atitude analítica e crítica perante o desenrolar dos acontecimentos. Os meios empregados para tal são de natureza artística.

Para a utilização deste efeito, segundo o objetivo já mencionado, é condição necessária que no palco e na sala de espetáculos não se produza qualquer atmosfera mágica e que não surja também nenhum "campo de hipnose". Não se intenta, assim, criar em cena a atmosfera de um determinado tipo de espaço (um quarto à noitinha, uma rua no outono), nem tampouco produzir, através de um ritmo adequado da fala, determinado estado de alma.

Não se pretende "inflamar" o público dando-se rédea solta ao temperamento, nem "arrebatá-lo" com uma representação bem feita de músculos contraídos. Não se aspira, em suma, pôr o público em transe e dar-lhe a ilusão de estar assistindo a um acontecimento natural, não ensaiado. Como se verá a seguir, a propensão do público para se entregar a uma tal ilusão deve ser neutralizada por meios artísticos.

É condição necessária para se produzir o efeito de distanciamento que, em tudo o que o ator mostre ao público, seja nítido o gesto de mostrar. A noção de uma quarta parede que separa fisicamente o palco do público e da qual provém a ilusão de o palco existir, na realidade, sem o público, tem de ser naturalmente rejeitada, o que, em princípio, permite aos atores voltarem-se diretamente para o público.

O contato entre o público e o palco fica, habitualmente, na empatia. Os esforços do ator convencional concentram-se tão completamente na produção deste fenômeno psíquico que se pode dizer que nele, somente, se descortina a finalidade principal da sua arte. As minhas palavras iniciais, ao tratar desta questão, desde logo revelam que a técnica que causa o efeito de distanciamento é diametralmente oposta à que visa a criação da empatia. A técnica de distanciamento impede o ator de prodzir o efeito da empatia.

No entanto, o ator, ao esforçar-se para reproduzir determinadas personagens e para revelar o seu comportamento, não precisa renunciar completamente ao recurso da empatia. Servir-se-á deste recurso na medida em que qualquer pessoa sem dotes nem pretensões teatrais o utilizaria para representar outra pessoa, ou seja, para mostrar o seu comportamento.

Todos os dias, em inúmeras ocasiões, se vêem pessoas a mostrar o comportamento de outras (as testemunhas de um acidente demonstram aos que vão chegando o comportamento do acidentado; este ou aquele brincalão imita, trocista, o andar insólito de um amigo etc.), sem que estas pessoas tentem induzir os espectadores a qualquer espécie de ilusão. Contudo, tanto as testemunhas do acidente como o brincalhão, por exemplo, é por empatia para com as suas personagens que se apropriam das particularidades destas.

O ator utilizará, portanto, como ficou dito, este ato psíquico. Deverá consumá-lo, porém - ao invés do que é hábito no teatro, em que tal ato é consumado durante a própria representação e com o objetivo de levar o espectador a um ato idêntico - apenas numa fase prévia, em qualquer momento da preparação do seu papel, nos ensaios.

Para evitar que a configuração dos acontecimentos e das personagens seja demasiado "impulsiva", simplista e desprovida do mínimo aspecto crítico, poderá realizar-se maior número de ensaios à "mesa de estudo" do que habitualmente se faz. O ator deve rejeitar qualquer impulso prematuro de empatia e trabalhar o mais demoradamente possível, como leitor que lê para si próprio (e não para os outros). A memorização das primeiras impressões é muito importante.

O ator terá que ler o seu papel assumindo uma atitude de surpresa e, simultaneamente, de contestação. Deve pesar prós e contras e apreender, na sua singularidade, não só a motivação dos acontecimentos sobre o que versa a sua leitura, mas também o comportamento da personagem que corresponde ao seu papel e do qual vai tomando conhecimento. Não deverá considerar este como pré-estabelecido, como "algo para que não havia, de forma alguma, outra alternativa". Antes de decorar as palavras, terá de decorar qual a razão da sua surpresa e em que momento contestou. Deverá incluir na configuração do seu papel todos estes dados.

Uma vez em cena, em todas as passagens essenciais, o ator descobre, revela e sugere, sempre em função do que faz, e tudo o mais que não faz. Que dizer, representa de forma que se veja, tanto quanto possível claramente, uma alternativa, de forma que a representação deixe prever outras hipóteses e apenas apresente uma entre variantes possíveis. Diz, por exemplo, "isto você há de me pagar", e NÃO diz "está perdoado". Odeia os filhos e não procura aparentar que os ama. Caminha para a frente, à esquerda, e não para trás, à direita. O que não faz tem de estar contido no que faz, em mútua compensação. Então todas as frases e gestos adquirem o significado de decisões, a personagem fica sob controle e é examinada experimentalmente. A designação técnica deste método é: determinação do não-antes-pelo-contrário.

O ator, em cena, jamais chega a metamorfosear-se integralmente na personagem representada. O ator não é nem Lear, nem Harpagon: antes, os representa. Reproduz sua falas com a maior autenticidade possível, procura representar sua conduta com tanta perfeição quanto sua experiência humana o permite, mas não tenta persuadir-se (e dessa forma persuadir, também, os outros) de que neles se metamorfoseou completamente. Será fácil aos atores entenderem o que se pretende se, como exemplo de uma demonstração sem metamorfose absoluta, indicar-se a forma de representar de um encenador ou de um ator que estejam mostrando como se deve fazer determinado trecho de uma peça. Como não se trata do seu próprio papel, não se metamorfoseiam completamente, acentuam o aspecto técnico e mantêm a simples atitude de que está fazendo uma proposta.

Se tiver renunciado a uma matamorfose absoluta, o ator nos dará o seu texto não como uma improvisação, mas como uma citação. Mas, ao fazer a citação, terá, evidentemente, de dar-nos todos os matizes de sua expressão, todo o seu aspecto plástico humano e concreto; identicamente, o gesto que exibe aparecerá como uma cópia e deverá ter o caráter material de um gesto humano.

Numa representação em que não se pretenda uma metamorfose integral, podem utilizar-se três espécies d recursos para distanciar a expressão e a ação da personagem representada:

1 - Recorrência à terceira pessoa.

2 - Recorrência ao passado.

3 - Intromissão de indicações sobre a encenação e de comentários.

O emprego da forma da terceira pessoa e do passado possibilitam ao ator a adoção de uma verdadeira atitude distanciada. Além disso, o ator deve incluir em seu desempenho indicações sobre a encenação e também expressões que comentem o texto, proferindo-as juntamente com este, no ensaio. ("Ele levantou-se e disse, mal-humorado, pois não tinha comido nada..." ou "Ele ouvia aquilo pela primeira vez, e não sabia se era verdade...", ou ainda "Sorriu e disse, com demasiada despreocupação..."). A intromissão de indicações na terceira pessoa sobre a forma de representar provoca a colisão de duas entoações, o que, por sua vez, provoca o distanciamento da segunda pessoa (o texto propriamente dito).

A representação distanciar-se-á também se a sua ralização efetiva for precedida de uma descrição verbal. Neste caso, a adoção do passado coloca a pessoa que fala num plano que lhe permite a retrospecção das falas. Desta forma, distancia-se a fala, sem que o orador assuma uma perspectiva irreal; com efeito, este, ao contrário do auditório, já leu a peça até o fim e pode, pois, pronunciar-se sobre qualquer fala, partindo do desfecho e das consequências, melhor do que o público que sabe menos do que ele e que está, portanto, como que alheio à fala.

É pela conjugação destes processos que se distancia o texto nos ensaios; mas também durante a representação o texto se mantém, de maneira geral, distanciado. Quanto à dicção propriamente dita, da sua relação direta com o público, sobrevém-lhe a necessidade e a possibilidade de uma variação que será conforme o grau de importância a conferir às falas. O modo de falar das testemunhas, num tribunal, oferecem-nos um bom exemplo disto.

A maneira de a personagem frisar as suas declarações deverá produzir um efeito artístico especial. Se o ator se dirigir diretamente ao público, deve fazê-lo francamente, e não num mero "aparte", nem tampouco num monólogo do estilo dos do velho teatro. Para extrair do verso um efeito de distanciamento pleno, será conveniente que o ator reproduza, primeiro, em prosa corrente, nos ensaios, o conteúdo dos versos, acompanhado, em certas circunstâncias, dos gestos para ele estabelecidos. Uma estruturação audaciosa e bela das palavras distancia o texto. (A prosa pode ser distanciada por tradução para o dialeto natal do ator).

Dos gestos propriamente nos ocuparemos depois; mas desde já devemos dizer que todos os elementos de natureza emocional têm de ser exteriorizados, isto é, precisam ser desenvolvidos em gestos. O ator tem de descobrir uma expressão exterior evidente para as emoções de sua personagem, ou então uma ação que revele objetivamente os acontecimentos que se desenrolam em seu íntimo. A emoção deve manifestar-se no exterior, emancipar-se, para que seja possível tratá-la com grandeza. A particular elegância, força e graça do gesto provocam efeito de distanciamento. A arte chinesa é magistral no tratamento dos gestos. O ator chinês alcança o efeito de distanciamento por observar abertamente seus próprios gestos.

Tudo o que o ator nos dá, no domínio do gesto, do verso etc., deve denotar acabamento e apresentar-se como algo ensaiado e concluído. Deve criar uma impressão de facilidade, impressão que é, no fundo, a de uma dificuldade vencida. O ator deve, também, permitir ao público uma recepção fácil da sua arte, do seu domínio da técnica. Representa o acontecimento perante o espectador, de uma forma perfeita, mostrando como esse acontecimento, a seu ver, se passa ou como terá, porventura, se passado. Não oculta que o ensaiou, tal como o acrobata não oculta o seu treino; sublinha claramente que o depoimento, a opinião ou a versão do passado que está nos dando são seus, ou seja, os de um ator.

Visto que não se identifica com a personagem que representa, é possível escolher uma determinada perspectiva em relação a esta, revelar sua opinião a respeito dela, incitar o espectador - também, por sua vez, não solicitado a qualquer indicação - a criticá-la. A perspectiva que adota é crítico-social. Estrutura os acontecimentos e caracteriza as personagens realçando todos os traços a que seja possível dar um enquadramento social. Sua representação tranforma-se, assim, num colóquio sobre as condições sociais, num colóquio com o público, a quem se dirige. O ator leva seu ouvinte, conforme a classe a que este pertence, a justificar ou a repudiar tais condições.

O objetivo do efeito de distanciamento é distanciar o "gesto social" subjacente a todos os acontecimentos. Por "gesto social" deve enterder-se a expressão mímica e conceitual das relações sociais que se verificam entre os homens de uma determinada época.

A invenção de títulos para as cenas facilita a explicação dos acontecimentos, do seu alcance, e dá à sociedade a chave desses acontecimentos. Os títulos deverão ser de caráter histórico.

Chegamos assim a um método decisivo, a historiação dos acontecimentos. O ator deve representar os acontecimentos dando-lhes o caráter de acontecimentos históricos. Os acontecimentos históricos são acontecimentos únicos, transitórios, vinculados a épocas determinadas. O comportamento das personagens dentro desses acontecimentos não é, pura e simplesmente, um comportamento humano e imutável, reveste-se de determinadas particularidades, apresenta, no decurso da história, formas ultrapassadas e ultrapassáveis e está sempre sujeito á crítica da época subsequente, crítica feita segundo as perspectivas desta. Esta evolução permanente distancia-nos do comportamento dos nossos predecessores.

Ora, o ator tem de adotar para com os acontecimentos e os diversos comportamentos da atualidade uma distância idêntica à que é adotada pelo historiador. Tem de nos distanciar dos acontecimentos e das personagens. Os acontecimentos e as pessoas do dia-a-dia, do ambiente imediato, possuem, para nós, um cunho de naturalidade, por nos serem habituais. Distanciá-los é torná-los extraordinários. A técnica da dúvida, dúvida perante os acontecimentos usuais, óbvios, jamais postos em dúvida, foi cuidadosamente elaborada pela ciência, e não há motivo para que a arte não adote, também, uma atitude tão profundamente útil como essa. Tal atitude adveio à ciência do crescimento da força produtiva da humanidade, tendo-se manifestado na arte exatamente pela mesma razão.

No que diz respeito ao aspecto emocional, devo dizer que as experiências do efeito de distanciamento realizados nos espetáculos de teatro épico, na Alemanha, levaram-nos a verificar que também se suscitam emoções por meio dessa forma de representar, se bem que emoções de espécie diversa das do teatro corrente. A atitude do espectador não será menos artística por ser crítica. O efeito de distanciamento, quando descrito, resulta muito menos natural do que quando realizado na prática. Esta forma de representar não tem, evidentemente, nada a ver com a vulgar "estilização". O mérito principal do teatro épico - com o seu efeito de distanciamento, que tem por único objetivo mostrar o mundo de tal forma que este se torne suscetível de ser moldado - é justamente a sua naturalidade, o seu caráter terreno, o seu humor e a renúncia a todas as espécies de misticismo, que imperam ainda, desde tempos remotos, no teatro vulgar.
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Extraído de Estudos sobre Teatro (Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1978). O presente artigo está publicado na revista Cadernos de Teatro nº 82/1979, edição já esgotada.

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