segunda-feira, 27 de julho de 2009

Diante de uma crítica adversa

Domingos Oliveira


Quando recebo uma crítica adversa releio o bom Truffaut: "O artista cria a si mesmo. Torna a si mesmo interessante e depois entra numa vitrine. É um privilégio desde que se aceite o outro lado da moeda: o risco que envolve ser estudado, analisado, notado, julgado, criticado, negado". Aqueles que fazem o julgamento - os críticos - têm conhecimento da enormidade do privilégio do ato da criação, dos riscos que corre aquele que se expõe a ela e, em troca, sentem uma admiração secreta e um respeito que poderiam, pelo menos parcialmente, devolver a paz de espírito ao artista (se ele pudesse se lembrar disso).

Nas relações entre o artista e o crítico tudo acontece em termos de poder e, curiosamente, o crítico jamais perde a noção de que, na relação de poder, ele é o mais fraco. Mesmo que tente esconder esse fato por trás de um tom agressivo. O artista sempre acha que os críticos são contra ele porque sua memória seletiva benignamente favorece suas neuroses persecutórias.

Diante de uma má crítica, o artista deve também ter em mente uma outra ponderação: o prestígio. Não devemos confundir a obra com um prestígio conquistado através de anos de trabalho. Exceção feita ao Cidadão Kane, todos os outros filmes de Orson Welles foram severamente criticados quando de seus lançamentos, ou por serem loucos demais, ou barrocos demais. Ou shakespearianos demais (ou de menos). Mas a reputação e o prestígio de Welles não foram sequer arranhados. O mesmo vale, sem dúvida, para Buñuel e Bergman. Bertollucci é tão importante quanto Charles Chaplin; levando em conta que são iguais perante Deus, devem também sê-lo perante os críticos. Fora isso, só o tempo é que põe as coisas no lugar.

Mas por que nos aborrecemos tanto ao receber uma crítica adversa? Por que essa vontade de esganar os críticos, às vezes até boas pessoas? De onde vem essa revolta, esse sentimento de humilhação, de incompreensão; essa certeza de havermos sido desrespeitados? Em vez de negar, meditaremos.

O que é a crítica? Quem é a crítica? São jornalistas amantes da arte, interessados em nossa atividade. Mas que, por falta de vocação ou outro tipo de impossibilidade, não a exercem (de modo geral). Apenas a partir desse dado, é fácil verificar que eles representam um tipo muito especial de platéia, de espectador. Uma espécie de guardiães do tesouro, que apenas podem olhar, sem saírem da porta, o brilho de todo aquele ouro. É difícil manter integridade moral numa posição assim. E, no entanto, às vezes, alguns deles conseguem!

Além disso, trata-se de uma posição de poder. Dentro de um jornal e, particularmente, no que diz respeito à classe teatral. Afinal, são eles que distribuem os prêmios! É evidente que, para alcançar esse posto, pelo menos entre nós, o crítico tem de ser uma pessoa muito hábil, digamos assim. Uma definição exata de opiniões desagrada a gregos e troianos, fazendo com que o crítico tenda rapidamente a perder sua coluna.

Um outro valor, de igual ou maior monta, contribui para que os críticos sejam, de modo geral, não mais que opiniões indefinidas: é preciso coragem para exercer a função. Falando claro, eles são ao mesmo tempo adulados e odiados pela classe teatral inteira, classe esta que admiram e amam na medida em que são também gente de teatro. Enfim, não é fácil - e quase que obrigatoriamente - estar sobre o muro (cheios de cacos de vidro).

Some-se a issoo fato de que os críticos possuem um alto nível de informações sobre teatro, excesso este que muitas vezes conduzem a preconceitos. E ainda o fato de que vêem teatro demais, coitados. Como todos sabem, o teatro é, em geral, uma coisa chatísssima - isso naturalmente eleva seu nível de exigência, afastando assim, inexoravelmente, a inocência que uma opinião profunda deve obrigatoriamente possuir.

Juntando-se os fatores, conclui-se que a opinião de um crítico é, no mínimo, suspeita. Comprometida, no mínimo. Muito longe da opinião da platéia, no mínimo dos mínimos. Deve servir de referência para o artista, sem dúvida, é material de reflexão. Mas jamais deve ser levada a sério.

Não menos suspeita é a opinião dos amigos. Uma das razões mais fortes pelas quais faço teatro é, sem dúvida, agradar aos amigos. Tenho duas ou três pessoas na minha vida que se eles gostarem, então para mim já está ótimo. Mas também eles são gravemente suspeitos. Na medida em que não podem desvincular a obra do amigo que é também o autor. Também eles não devem ser levados muito a sério.

Bem, quanto aos conhecidos, ou amigos menos íntimos, bem, com estes todo cuidado é pouco. Quem já não mentiu desavegonhadamente naquela visita exótica que temos de fazer aos camarins, cumprimentar os amigos, depois de tê-los visto fazer um trabalho que achamos péssimo? E encontramos aqueles entes queridos - suados, exaustos, com um sorriso nervoso, perguntando o que você achou -sem a menor idéia daquilo que você tem certeza: que ele jamais deveria ter entrado em cena para fazer aquela besteira, que podia ter passado sem essa!

É preciso ser um herói moderno para não mentir nos camarins após as estréias. Pessoalmente, não acredito em nada do que me dizem nos camarins. Nem que seja repetido três vezes. Não acredito nem na minha mãe.

Um índice interessante é perguntar a um amigo fiel, que ainda não tenha visto a peça, o que é que andam dizendo por aí. Assim talvez você possa ter uma noção da repercussão do trabalho, pelo menos nos bares habituais. Seu amigo poderá dizer a você até que ponto falam mal, garantindo naturalmente que não achará nada disso, quando for lá ver.

Nem mesmo na opinião do público, revelada pela temperatura dos aplausos, é possivel confiar muito. Já vi peças ((aliás, já fiz peças) que o público adora, mas não recomenda (!). Quem vai, gosta, mas não manda ninguém ir ver...Como se a peça fosse a curra do ditado americano: "Se é inevitável, aproveite". Mas avise ao amigo para não passar nem perto. Impossível perceber como o mundo nos vê. É sem dúvida espesso o cristal de nossa redoma, mas existem ainda alguns critérios de avaliação da qualidade do trabalho. Um dos mais sérios, sem dúvida, é a bilheteria.

Um sucesso de bilheteria tem o significado inequívoco de aceitação do nosso trabalho por parte da sociedade em que vivemos. Embora paire sempre, sombriamente, no ar das cogitações o desejo de saber que parte do trabalho eles aceitaram. Terá sido a profundidade do texto, a firme coragem da direção...ou aquela atriz que acabou de fazer uma novela na TV Globo?

No rosto deles, quando aplaudem,também muito pode ser visto, para quem souber ver. Se, no final, os bonecos levantam, é porque a coisa vai!

E naturalmente há o correr do tempo. Do martelo de anos e décadas e séculos. Isso realmente arruma tudo. É pena que não fiquemos para ver, finalmente, quem é quem, embora o tempo também tenha o seu critério, que não é absoluto. O tempo julga segundo aquilo que interessa à "eternidade da espécie", só isso...

Assim sendo, diante do exposto, resta aconselhar - a mim mesmo e ao leitor - que não modere sua paranóia no sentido de considerar-se o juiz último e único da validez da própria obra. Juiz sem legislação ou critério, posto que, de tão vagos, todos serão fúteis, exceto do prazer com que foi criada a obra em questão. Absolutamente sós, na meio da noite infinda deste local desconhecido, criemos portanto. Na certeza infundada, porém convicta, de que não enlouquecemos ainda. E julguemos! Apenas levando em conta o brilho com o qual, no momento da criação, brilharam as estrelas sobre nossa única oval cabeça.
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O presente artigo foi extraído do livro Do tamanho da vida - reflexões sobre o teatro.

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