terça-feira, 16 de junho de 2009

Interação relacional:
uma abordagem alternativa para o desenvolvimento de um personagem
Bill Somers
"Permanecer no pesonagem" significa acreditar em um nível visceral nas relações exigidas pelo papel: trocando o termo "personagem" por "relacionamento", introduz-se o tema delicado (pelo menos para muito atores) que é "desenvolver um personagem". Quando um ator afirma estar "buscando seu personagem" e o diretor pergunta: "buscando o quê?", o ator normalmente torna-se confuso, às vezes zangado, quase sempre na defensiva. Muitos dos nossos atores têm sido treinados para "buscar o personagem". Este não é o problema. O maior problema é que dois atores se encontaram há apenas dez minutos, e o texto exige que eles se relacionem como mãe e filho.
Crença
Desenvolver esta crença é muitas vezes difícil, e na maioria das vezes é precisamente o elemento que falta em muitas encenações, profissionais ou amadoras. A atriz famosa ou a estrela universitária que interpreta Amanda em "À margem da vida" representa a mãe perturbada e dominadora, isto é, seu "personagem". O que acontece de fato é que a atriz representa mais ou menos uma ação toda a noite: severa acusação. Igualmente, a atriz representando Hedda Gabler desenvolve o "personagem" da mulher fria, indiferente, endadonha, e subsequentemente age com uma fria indiferença, não importa com quem ela fale. Essa abordagem não só leva ao enfado como também nega a textura real do relacionamento humano e a interação.
Significado
Como as teorias de comunicação, psicologia e sociologia nos têm demonstrado nestes últimos trinta anos, e como a filosofia nos tem sugerido no decorrer do século, a interação é relativa. O significado, tanto emocional como intelectual, depende com quem você está falando, onde e quando. Em certo sentido, o moderno "você", de acordo com essas disciplinas, não pode ser um simples "você", não pode ser um simples personagem. Antes, cada indivíduo transforma-se em vários "vocês", torna-se muitos papéis, dependendo com quem ele está se relacionado, quando e onde. Muitos exercícios de Josephe Chaikin sobre transformação de papéis só servem a uma útil função de aguçar a habilidade do ator para adotar imediatamente novos relacionamentos, mas também serve como um reflexo estético de nossa percepção da contínua mudança de natureza de nossas realidades individuais.
Para o ator, "personagem" é talvez um rótulo antiquado, ou ilusório. E essa venerada definição para o processo de atuar tem talvez impedido mais do que ajudado muitos em sua procura do que o ator de fato faz no palco. Discutindo as dificuldades da língua e do subtexto do ator, tanto no drama clássico quanto moderno, William L. Sharp, em Language in Drama, explica:
"Não imito um 'personagem'. Gostaria que pudéssemos destruir esta palavra de todas as discussões sobre uma produção dramática. Como ator, eu devo simplesmente recriar em meu corpo a atitude que Shakespeare criou, e essa atitude é definida pelas coisas que preciso fazer ou não fazer, durante a peça".
Cuidado
Mesmo Richard Boleslavsky foi cuidadoso, ao descrever o processo como "caracterização", em vez de recorrer à palavra personagem. E Stanislavski, usando a semântica de um período anterior e de uma maneira antiga de representar, parece estar constantemente procurando conceitos e significados para expandir este termo delimitador.
Sem o termo, o ator não pode mais "sair do personagem". Como atores experientes há muito sentiram ou souberam, o que o ator abandonou foi a concentração: ou sobre outro ator em cena, a quem ele deveria estar tentando afetar fisicamente ou emocionalmente, ou sobre uma imagem fora do palco, para a qual ele deveria ter desenvolvido uma realidade imaginativa personalizada, sentida. Na verdade, o que o ator fez quando "saiu do personagem" foi pensar em si próprio como ator, pensar sobre sua próxima fala, pensar na platéia ou na técnica física, vocal de seus colegas que com ele contracenam. Essas realidades externas perturbam a realidade imaginada da peça, e quando ocorrem, nós, como platéia, sentimos que houve algo de errado. Quando o texto requer que o ator "saia do personagem", na verdade ele requer que o ator desenvolva um relacionamento diferente com a platéia. Ele simplesmente representa outro papel, geralmente acompanhado de uma mudança de atitude.
Problemas
Se a expressão "personagem" desaparece como um conceito básico, o ator se defronta com três problemas gerais: como começar a desenvolver a convicção e o estímulo para o papel; que técnicas específicas usar para construir o papel; e como unificar o papel. Primeiro, examinando o relacionamento mais do que o personagem, o ator reconhece que tem muitos relacionamentos ou papéis na peça, cada um diferente. Laura pode ser "tímida", mas certamente não o é com o irmão Tom. Como na vida real, podemos nos achar tímidos, mas esse traço só se manifesta em certas circunstâncias e com certas pessoas. Assim como Laura é de início tímida com Jim, alguém pode ficar tímido quando rodeado por estranhos, numa festa cheia de gente. No entanto, o que acontece com nossa timidez quando nos relacionamos com uma criança de cinco anos? Como na vida, no palco, se o ator desenvolve a convicção numa variedade de relacionamentos, em vez de desenvolver um personagem, o resultado é um papel estruturado com uma dinâmica variedade de atitudes e motivações.
Abordagem
Segundo, dependendo da personalidade do ator, as técnicas para desenvolver devem seguir a abordagem mais pessoal de Stanislavski ou a mais física de Louis Jouvet, ou de modernas companhias teatrais. Um rápido método relacional é uma variação da "memória afetiva" de Stanislavski. Em vez de o ator aplicar suas experiências passadas primordialmente para sua própria realidade interna, ele exterioriza essa realidade para o outro ator. Por exemplo: se uma atriz tem que representar o papel de mãe de um ator, durante alguns ensaios este pode projetar na atriz uma imagem imaginária de sua própria mãe. Ou se a atriz nunca teve um filho, ela pode projetar no ator a imagem de um irmão mais novo ou uma metáfora vivencial equivalente. O uso contínuo que Helen Hayes fazia de seu poodle com esse proveito me vem à memória. A imagem extrínseca buscada na experiência pessoal geralmente desaparece depois de alguns ensaios, assim que ambos os atores solidificam suas atitudes emocionais mútuas.
Complexidade
Esta técnica pode parecer simplista, mas os resultados são complexos. É surpreendente como muitas atrizes em tais papéis demonstram pouca responsabilidade maternal para com seus atores-filhos. Elas acentuam coisas como criticar, censurar, ensinar, e dão pouca ênfase às atitudes ternas, que nos permitem acreditar e ter empatia pela dimensão de amor-ódio em qualquer relacionamento. Igualmente, o ator-filho, que na vida real nunca duvida do status natural das estruturas da sociedade ou da família, não concederá o status superior de mãe à atriz, como faria com sua própria mãe. Então, começa um ciclo problemático. Em termos de relacionamento, os atores tratam-se como iguais. Como o ator não trata a atriz como estando numa posiçlão de superioridade, esta representa com ainda maior ênfase as ações de censurar e ensinar. Representar uma posição subalterna é uma façanha difícil para qualquer ator. Não só o ego do ator briga com esta noção como também sua psicologia natural de autoproteção rebela-se contra a idéia de admitir a superioridade a quem lhe é igual.
Caminho
A confiança e o respeito do ator pela necessidade de desenvolver um efeito verdadeiro facilita o problema da disposição em adotar um determinado status necessário. Esta abordagem física abrange outro caminho para se desenvolver vários relacionamentos num só papel. Aqui, o ator encontra algo extremamente enfadonho e ao mesmo tempo extremamente atraente no seu ator companheiro. Esse "algo" pode variar do respeito ou desrespeito pela técnica de palco de seu colega ator para um traço físico ou emotivo desse colega. O propósito é estruturar o relacionamento: todo relacionamento humano, não importa o quanto íntimo ou hostil ele seja, mostra um certo equilíbrio de elementos positivos e negativos. Adicionalmente, o ator encontra em seu colega um traço físico ou emocional que se aproxima das necessidades de relacionamento do papel. Se este colega vai ser seu pai, ele precisa encontrar um lado autoritário que realmente o intimide; se este colega vai ser seu filho, ele precisa encontrar um traço de fraqueza ou desamparo. O objetivo aqui é eliminar de início a ironia das imposições imaginárias entre atores como atores. Quando um ator olha para o outro, ele fisicamente e emocionalmente se relaciona com os traços selecionados que literalmente vê em seu colega. Este método de construir relacionamentos leva mais tempo, mas frequentemente mostra-se mais completo e profundo.
Unidade
Por último, sem o "personagem" como um conceito focal, como o ator unifica todo um papel? Primeiro, ele observa seu relacionamento principal na peça; segundo, analisa sua motivação dominante em relação a este relacionamento; terceiro, ajusta outros relacionamentos e motivações a esse centro primordial. De novo, fazendo uso das teorias modernas de interação pessoal, a motivação, como um conceito de trabalho, torna-se mais dinâmica quando vista em termos relacionais. Interpretendo-a como "Eu quero de..." em vez de simplesmente "Eu quero..." não só o ator percebe que seu ponto certo de concentração reside em seu colega, mas também mostra a ele que seu objetivo é gerar uma reação no comportamento desse colega.
Motivação
Em "À margem da vida", o relacionamento principal de Tom é com Amanda. Sua motivação não é apenas "Eu quero deixar esta casa". Ao contrário, é: "Por mim, eu gostaria que minha mãe não fizesse resistência à minhapartida". A segunda forma retrata o contexto relacional do papel, e descreve a variedade de ações que Tom pode usar para tentar conseguir este objetivo primordial. Ele adula Amanda, agrada a ela, explica-lhe, censura-a e finalmente deixa-a de lado. Tom não alcança seu objetivo principal. Este exemplo ocorre em muitos dramas, seja "Hamlet" ou "A morte do caixeiro viajante".
De qualquer forma, Tom tenta, esforça-se e interage frontalmente durante toda a peça, e isto constitui a ação dramática. A motivação e relacionamentos secundários de Tom na peça podem ser: "Se eu pudesse faria com que minha mãe aceitasse Laura como ela é, em vez de manter uma falsa imagem de Laura sobre mim, como uma barreira a que eu deixe a casa". Surge uma unidade relacional quando as motivações são interpretadas dessa maneira e, ainda mais significativo para o ator, também as atitudes que ele tomará em relação a cada qual dos outros atores. Da mesma forma que Tom, cada ator desta peça encontrará seu relacionamento particular principal e sua respectiva motivação. Utilizar a frase "Seu eu pudesse" muitas vezes ajuda o ator a conceituar sua real motivação, que frequentemente está mascarada na peça por um conflito imediato.
Questão
Resta uma questão final: e aqueles gestos peculiares, maneirismos, modos de andar, timbres de voz, e tudo mais que compreende a noção convencional de um "personagem?" Infelizmente, o jovem ator muitas vezes começa com estas técnicas, enquanto o ator veterano as esquece. Esses traços característicos podem ser rotulados mais como "extensões" do que como "personagem", já que implicam em que o ator deverá ampliar sua maneira normal físico-vocal, explorando novos meios de usar seu corpo e voz para cada papel. Quando o ator jovem tenta tais extensões, torna-se artificial e estereotipado, porque se concentra na peculiaridade físico-vocal, em vez de concentrar-se na motivação e na ação. O ator mais velho frequentemente abandona a extensão porque ele encontrou uma abordagem particular, vocal e física, que funciona bem no palco ou na tela, e que agora aplica em qualquer papel. Em outras palavras, o ator mais velho concentra-se agora somente no relacionamento, motivação e ação.
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Artigo extraído de Players, 1976, vol. 51 nº 2. Tradução de Carminha Lyra. Este artigo consta da revista Cadernos de Teatro nº 76/1978, edição já esgotada.

Um comentário:

  1. Po Lionel,
    Muito legal esse texto, confesso que vou ter q reler, p poder absorver melhor hehehe.
    E da mta vontade de bater um papo com vc pra discutir essas coisas...
    Lembre de mim se algum dia vc voltar a fazer aqueles grupos de estudo hein!
    Saudades!
    Bjkas!
    Marcela Cabelo ^_^

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