sexta-feira, 22 de maio de 2009

Notas sobre a direção de "O médico à força",
de Molière, no Tablado (1962)

Maria Clara Machado

Acho muito mais fácil atingir os grandes sentimentos, desafiar a sorte em versos, acusar o destino e aos deuses, dizer desaforos, que penetrar no ridículo dos homens e representar, no palco, de um modo que agrade, os defeitos de todo mundo. Estranho ofício este de fazer rir as pessoas de bem...(MOLIÉRE)

Para o diretor brasileiro, afastado das tradições do teatro francês, a primeira dificuldade que se lhe depara ao tentar dirigir uma peça de Molière é justamente o peso dessa tradição. A tentação é grande de procurar imitar, numa busca de fidelidade, as representações do teatro francês, através das concepções da Comédie Française, de grupos que vimos no estrangeiro ou que nos visitaram. Para aqueles diretores que nunca viram a representação de um clássico, a tentativa de montar Molière torna-se uma espécie de audácia. Os entendidos dirão talvez que é preferível deixar os clássicos como literatura apenas, a cometer o erro de encená-los de uma maneira não tradicional. A obrigação de fazer como eles fizeram ou fazem desafia a nossa boa vontade de conceber um espetáculo clássico. Felizmente para os diretores inexperientes que nunca viram Molière em cena, e felizmente para o teatro, esse tabu de fidelidade à mise-en-scène clássica é um tabu como qualquer outro, ou Molière não seria um autor universal. E é Jouvet quem diz:

"Todo francês carrega consigo uma hereditariedade clássica, porém, pervertida pelos colégios e pelos preconceitos. Ora, a 'entidade dramática', a peça de teatro possui uma vida orgânica. A peça clássica, mais do que as outras, é capaz de uma vida mais sólida. As peças de Molière permanecem inalteradamente jovens, apesar de estragadas pelos sábios e entendidos, pelos pesquisadores infatigáveis que, por preocupações pedagógicas idiotas, sujaram livremente todas as edições que foram feitas de Molière, principalmente durante o século XIX. É preciso, pois, voltar a Molière - ao artista, ao diretor-comediante. Todavia, voltar ao clássico representado, isto é, em ação, vem a ser abandonar o Molière moralista, filósofo, para reencontrar o Molière dramaturgo e justamente o que impressiona em todas as suas comédias é a espécie de irrealidade ou supra-realidade do assunto. Nada de naturalismo aqui, nem de sátira social. A inserção de Molière no mundo de seu tempo deve ser procurada em outra parte. Amê-mo-lo, pois, como ele teria desejado ser amado, isto é, naquele plano extra-temporal em que ele próprio colocou suas peças".

Universal

Ser universal é conhecer o homem em qualquer situação, é conhecer suas fraquezas, misérias e alegrias, característas estas que, por serem universais, não representam nem uma época definida, nem um estado de alma próprio deste ou daquele povo. O amor, o ciúme, a esperteza, a avareza, a cobiça pertencem ao homem e é disso que Molière trata em sua obra, e é isso que incumbe ao diretor transmitir ao público quando dirige suas peças. Vencida a primeira etapa - o medo de desagradar aos entendidos, que pediriam cópia fiel da maneira de representar Molière como o teatro francês o faz - resta-nos encontrar o estilo que serviria a Molière.

Estilo

Estilo, diz o dicionário, é o conjunto de qualidades de expressão, características de um autor ou de uma época. O único caminho para se descobrir o estilo de um autor morto há séculos seria a fidelidade ao texto. E, na interpretação desse texto, que é a sua transposição à cena, não procurar, à maneira de nossa época, verdades psicológicas, nem implicações sociais. Há uma tendência generalizada nos diretores de teatro de querer dizer mais dos que os autores pretenderam. Se, com autores de peças psicológicas, isto pode funcionar, em relação a Molière seria uma catástrofe. O método de procurar interpretar além do que diz o texto, analisando a causa e as conseqüências de cada ação, usado em Molière, levaria a desvirtuá-lo.

Distorção

Em "O médico à força", por exemplo, Sganarelo é apenas um espertalhão inteligente, inculto mas sabido. Querer criar para esse personagem problemas liagados à sua situação social ou complexos em relação à mulher, seria torcer o texto. Talvez a representação saísse enriquecida de nuances psicológicas, de pausas cheias de sentido oculto, mas perderia em movimento, em ritmo e em comicidade. É preciso que o diretor não veja além do autor, mas com o autor. O método usado para interpretar um autor moderno seria desastroso em Molière. O que este autor quer transmitir - quando não é apenas fazer rir, como é o caso de "O médico à força" - já está no texto e não precisa ser redescoberto por ninguém. Sua maneira de comunicar é direta, é visual, é movimento. Sua obra é teatro - teatro, sem literatura que dê margem a interpretações. Esclarecido este ponto, resta-nos o mais difícil: fazer passar a AÇÃO para o público, isto é, REPRESENTAR.

Ator

Um ator de comédia, se quer fazer rir somente através de sua mímica, de seus movimentos, de sua maneira de dizer, tem que ser forçosamente um ator completo. Deve usar a sua intuição, o seu instinto de tempo e ritmo, seu domínio do corpo, sua presença de espírito, rapidez na resposta aos estímulos, quer seja da ação pedida, quer contracenando com outro ator.

Diretor

Ao diretor, cabe ter um conhecimento de todos os mistérios do palco, da comunicação dos atores com o público e do desejo do autor de fazer rir a platéia. O texto, dito com correção, fará o resto, sustentado por cenários, figurinos e iluminação, concebidos com espírito de liberdade criadora, dentro do estilo da época de Molière.

Medo

Finalizando, é o medo de uma tradição acadêmica e romântica que nos faz vacilar ao enfrentar Molière. E o que poderia ser grave para o diretor brasileiro - falta de conhecimento da tradição teatral clássica - torna-se sua melhor arma ao aproximar-se do autor. Pondo de lado o respeito ao homem de Luis XIV, orgulho da literatura francesa, podemos enfrentá-lo como homem de teatro, ator e diretor. Tudo que nos resta é fazer chegar ao público (público este que, como o do século XVII, quer rir de suas próprias fraquezas), fazer com que a peça atinja a platéia pela própria ação da palavra e do jogo de cena, sem segundas intenções, sem nuances psicológicas, sem literatura social. Talvez, assim, possamos, nós - brasileiros sem escola, sem tradição e sem mestres - tentar redescobrir o estilo de Molière.
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Artigo extraído da revista Cadernos de Teatro nº 108/1986, edição já esgotada.

Um comentário:

  1. Olá, gostaria muito que me enviasse o texto adaptado da peça "Médico à Força".
    É para o teatro Emcena, um teatro amador e de cariz socio-pedagógico.
    Agradeço antecipadamente
    Aldina Matos

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