terça-feira, 31 de março de 2009

A violência no Teatro

Martin Esslin

A conexão entre violência e drama é bastante óbvia. Um dos grandes clichês é que drama é conflito e de um certo modo, portanto, a violência está inserida no drama. Não digo que concordo inteiramente com essa definição. Há muitas peças boas que são puramente líricas e não contêm muito conflito. Mas há, certamente, grande quantidade de violência no drama, e não é, como em outras artes, exterior, mas algo que é inerente à sua própria forma.
O dramaturgo alemão Gerhart Hauptmann achava que toda tragédia era baseada no sacrifício humano. Não há evidência disso, mas há um pouco de verdade aí, no sentido de que drama, de certo modo, apresenta quadros do sofrimento humano para um público que se delicia com ele. Nesse sentido, o drama é um sacrifício humano. Podemos aplicar isso não só à tragédia, como pensava Hauptmann, mas também à comédia, porque na comédia o público ri da desgraça dos outros; na tragédia, chora-se por sua causa.

Tipos de violência
Tentando abordar o tema da violência no drama moderno como distinto do drama em geral, procurarei definir que tipos de violência encontramos no teatro e mostrar sua função no drama moderno. Se se toma como princípio de classificação os recipientes da violência, a forma mais evidente é a violência que ocorre entre os personagens da peça. Isto é, o que um personagem, na peça, faz ao outro, ou igualmente o que faz a si mesmo; por que, como veremos, no moderno drama, uma espécie de auto-violência tem papel particularmente importante. Esse tipo de violência está, por assim dizer, dentro do próprio mundo da peça. Mas não é esta a única forma de violência. Acho até que não é a mais importante.
Pode-se ter também a violência do autor, ou do produtor, da peça para com os personagens. Podemos ter um apelo total à violência do palco para a platéia. E isso acontece muito na maioria do moderno drama de protesto. Em quarto lugar, há o aspecto da violência que o público desenvolve em relação aos personagens no palco. Esse é um fenômeno muito interessante e muito relevante no teatro moderno. Em quinto lugar, há a violência dirigida pelo autor contra a platéia, também uma forma particularmente significativa no moderno drama.

Violência no contexto da peça
Este aspecto da violência é o mais tradicional. Se considerarmos a tragédia grega, há assassinatos na "Oréstia", há o auto-cegamento em "Édipo". No teatro isabelino, há também uma enorme quantidade de violência desse tipo, e o teatro dessa época é particularmente um teatro de combates, de violentos choques - todas as peças históricas culminam com cenas de batalhas. Mesmo se tomarmos a mais selvagem forma de violência encontrada em Webster e Tourneur, a agonia romântica do teatro jacobino, encontraremos verdadeiras orgias de violência dirigidas pelos personagens entre si. Na comédia, isso também acontece - para dar apenas um exemplo entre muitos, nos episódios tais como a zombaria de Malvolio em "Twelfth night".

Sociologia
No teatro moderno, isto é, o moderno teatro que vale a pena do ponto de vista literário, eu pensaria que esse aspecto de violência não é tão importante como costuma ser tradicionalmente no drama. A razão disso é sociológica. Com a televisão, filmes e rádio, a produção de lutas ou batalhas no teatro vivo tornou-se cada vez mais difícil. No teatro isabelino (que me desculpem se isso é um truismo para todos), as lutas, os duelos eram vistos pelo público como o ponto alto da ação. Eles usavam a técnica do emprego de pequenas bexigas cheias de sangue de boi sob a roupa e, no momento em que o herói mata o vilão, essa bexiga era furada e um esguicho de sangue aparecia salpicando todo mundo. Esses efeitos eram tão populares que os atores ingleses percorriam todo o continente, ganhando muito dinheiro, exibindo-se para platéias que não entendiam uma palavra do que diziam.

Superação
Na época da fotografia, isso simplesmente não funciona mais. Sempre me sinto contrafeito ao assistir às lutas no teatro, pois vocês todos sabem que os atores estão se cuidando para um não ferir o outro. Com a superação desse aspecto mais primitivo, o teatro moderno tem necessidade de formas muito mais sutis de violência. E se considerarmos essa categoria de violência-dentro-da-peça, veremos que a violência física tornou-se relativamente uma parte sem importância e a violência psicológica se tornou muito mais significativa.

"A lição"
Tomem, por exemplo, o que considero um exemplo clássico de violência no teatro moderno, "A lição", de Ionesco. Embora a peça culmine com o professor cravando a faca na aluna, a violência está de fato em toda a ação que precede este ato - a real violência está presente na dominação psicológica da aluna pelo professor, que gradualmente suga toda a sua vitalidade, de forma que a morte real da aluna já estaria realizada psicologicamente. Ou seja: a morte em si não constitiu um choque muito grande para a platéia e é realmente um final convencional simbólico, já sugerido através de outros recursos. Assim tem-se de fato uma situação (e isto é muitas vezes o que ocorre no teatro moderno quando a violência aparece dessa forma) em que a violência é uma forma de dominação psicológica ou sujeição.

"Mãe Coragem"
Outro exemplo de uma escola oposta vem de Brecht, se considerarmos a cena do assassinato da menina em "Mãe Coragem". A menina ouviu dizer que os soldados queriam atacar uma cidade próxima. Ela não podia avisar a cidade, que fora cercada, e sabe que todas as crianças vão ser mortas. Ela sobe no telhado de um palheiro. Não pode gritar porque é muda, mas pega um tambor e começa a tocar. Os soldados ameaçam atirar se ela não descer. Ela recusa e continua tocando até que os soldados a matam. Aqui também temos uma situação na qual o ato de violência apenas culmina de uma forma violenta, heróica, brutal de tensão, produzida por meios psicológicos inteiramente diferentes.

"Um bonde chamado desejo"
Certamente há ainda no teatro contemporâneo uma grande quantidade de violência presente, de violência no sentido shakespeariano. É, contudo, se tomarmos como exemplo um autor como Tennessee Williams, uma violência com fortes tons eróticos e sexuais. Tomem a violação no climax de "Um bonde chamado desejo". Violência - é certo - mas não apenas a violência de duas pessoas lutando e o público considerando como lutam bem. O tema é sempre o da dominação sexual e da sujeição. Há uma peça recente que, estou certo, causará um impacto aqui, que vi em Nova York no ano passado: "The brig", de Kenneth Brow.

Protesto
É uma das peças mais violentas que já vi em teatro. Essa peça foi levada pelo grupo The Living Theatre, e que é um protesto contra a maneira como tratam os prisioneiros no Campo de Detenção da Marinha. O Living Theatre se assemelha a uma grande sala. Não existe palco como tal, apenas o fim da sala, separada com rede de arame atrás da qual construíram a réplica exata da cela de detenção com cerca de 18 pessoas e beliches, um espaço estreito. A intervalos, no chão, há riscos brancos. A cada momento em que um prisineiro deseja cruzar a linha branca tem que pedir permissão ao guarda. Se um prisioneiro recebe ordem de apanhar um balde, por exemplo, tem que parar a cada risco branco e pedir permissão para cruzá-lo. Metade da peça parece consistir em os prisioneiros pedindo permissão para cruzar e os guardas gritando "Sim" e "Não". Essa insistente repetição é muito mais violenta e brutal do que o fato de à sua frente diversas pessoas etarem sendo surradas - no que ninguém acredita, ainda que eles o façam muito bem. É um comentário terrível a respeito de nosso tempo que, no teatro vivo, pelo menos, a violência real - para nós que a vimos tanto - não tem realmente nenhum efeito. Por isso tem que ser apoiada por certo tipo de violência psicológica.

Agressão verbal
Como sabem, a forma mais comum de agressão é a verbal. Este é o significado de toda a escola de escritores como os chamados Angry Yong Men. O impacto de "Look back in Anger", de Osborne, estava, como todos reconheceram, na eloquência do seu xingamento e na determinação de sua agressão verbal. Há em seu teatro uma violência de protesto, uma determinação de não aceitar a situação, que produz essa espécie de vitupério.

Mudanças
Houve muitas mudanças significativas, conforme notei em meu trabalho na BBC. Somente há cerca de 10 anos atrás, não era permitido usar a palavra "ensanguentado" no rádio. Hoje as peças usam essa palavra em abundância e outras mais fortes. Estou convencido que este é em si um aspecto da violência. É interessante também notar que muitos ouvintes tomam essas palavras como uma terrível agressão a eles. É um truismo psicológico que quanto mais se suprime ou reprime e mais moderada é a sociedade, maior é o desejo dessa espécie de violência reprimida aparecer. Acho que a maneira como essa violência está invadindo o teatro é extremamente significativa para ambas as situações, sociológica e psicológica, neste país.

Masoquismo
Um aspecto anteriormente mencionado - e isto é muito mais verdade no teatro moderno do que no clássico - é a violência que toma a forma de violência do personagem contra si próprio. Uma forma de violência interior, masoquista. Em Brecht, por exemplo, há pelo menos dois exemplos de auto-castração. O mais conhecido é "Mann ist mann", onde se vê a violência psicológica levada ao ponto de absolua perfeição - um homem transformado pela violência em uma personalidade diferente - que é, afinal, a maior das violências, a total erradicação da autonomia de uma pessoa. A outra é "Der Hofmeister". A auto-castração remonta até Baco e ao ritual grego, mas há uma curiosa revivescência disso. E num dos mais violentos dramas modernos, temos a mesma coisa - em "O balcão", de Genet.

Desprezo
A segunda forma de violência anteriormente referida é a que o autor usa contra seus próprios personagens. Ela se encontra sempre que os personagens são tratados com um desprezo realmente selvagem pelo autor. Isso acontece em "A cantora careca", de Ionesco,
em que os personagens se apresentam como bonecos sem vida, sem nenhum atributo humano. Mas pode-se ver isso também num autor que é muito mais profundo que Ionesco, Samuel Beckett. Em "Esperando Godot", por exemplo, a falta de piedade do autor com seus personagens se mostra de tal forma que ele não externa nenhuma simpatia por eles, de maneira que constantemente os impele a situações extremas. Outra forma (que Beckett usa muito bem) é a forma de violência em que o autor mutila seus personagens. Isso se relaciona com o masoquismo a que me referi e é significativo de nossa época.
Há uma peça de Adamov, "La grande e la petite manouvre", em que um homem que sempre demonstra uma certa fraqueza, perde um membro de tal modo que, tendo começado a peça robusto e são, acaba como um estropiado inválido, numa cadeira de rodas. Há aqui uma forma de masoquismo do autor, mas também de agressão contra seus próprios personagens, que ele trata cruelmente.

Máscaras
Outra forma é o uso de máscaras, comum em Brecht tem e que John Arden usou em "The happy haven" (uma peça interessantíssima, imerecidamente sem sucesso). Se você dá máscaras aos personagens, você os desumaniza e os despersonaliza e diz quase que abertamente que "esses personagens não são humanos, são monstros". É este um aspecto da violência que é, de resto, peculiar à nossa época: um dramaturgo voltando-se com tão selvagem agressividade contra suas próprias criaturas.

Provocação
Em terceiro lugar, há a provocação da violência entre os espectadores - isto nas peças destinadas a tumultuar a platéia provocando uma atitude de violência. Chegamos aqui à larga área da propaganda política. Temos visto muitos exemplos disso atualmente. Aplica-se principalmente às peças nazistas sobre judeus. Nunca vi nenhuma delas, apesar de muitas vezes terem sido levadas, mas vi algumas em filme.
Durante a guerra, num pequeno cinema perto do Almirantado, apresentavam-se filmes alemães. O interesse estava no uso calculado de técnicas psico-analíticas a fim de provocar a violência entre os espectadores. Lembro-me de um filme chamado "Jew Suss". O extraordinário é que se podia medir a atmosfera nesse cinema após o filme. Todos ali eram anti-nazi, mas no momento pareciam desejar sair dali para matar o primeiro judeu que encontrassem. Essa espécie de coisa era, e ainda é, certamente, a técnica normal usada em filmes patrióticos de guerra. É a técnica reconhecida na União Soviética. Há muitas peças em que os perversos imperialistas violentam ou matam pelo dinheiro e assim por diante. Isso é importante para o nosso tema, porque é calculado para criar um sentimento de agressão na platéia. Mas todas as máquinas de propaganda empregam essa técnica, que não é monopólio de nenhum país.

Violência contra os personagens
Em quarto lugar, os espectadores são levados à violência contra os personagens no palco. Isso pode parecer estranho, mas é o caso em toda a comédia ou farsa. Você ri por um sentimento de superioridade, você sente prazer com as desgraças dos outros, mesmo numa farsa em que ninguém escorrega numa casca de banana. Aqui, acho que o riso é de fato uma expressão de violência provocada na platéia contra os personagens.

Violência contra a platéia
Finalmente, a violência do autor contra a própria platéia. Voltemos a Ionesco: quando ele escreveu sua primeira peça, "A cantora careca", o fim original da peça descrito por ele é que "alguém gritaria 'vergonha', enquanto o diretor viria e tentaria acalmar os espectadores; mas a platéia continuaria gritando e a í o diretor chamaria a polícia, que chegaria com uma metralhadora, iria ao palco e mataria os espectadores". Quando lhe observaram que seria muito cara essa montagem da peça, ele apresentou outro final - o autor iria ao palco, enquanto o público aplaudia e o agrediria. Finalmente, ficou decidido não haver final, voltando-se ao início da peça, que é de fato como termina atualmente. Isso dá bem uma idéia dos sentimentos que o artista tem muitas vezes em relação ao público.
(O presente artigo, aqui resumido, é fruto de uma palestra do autor no Institute of Contemporary Arts, de Londres, publicado na revista Encore/1964. A íntegra deste artigo está na revista Cadernos de Teatro nº 47/1970, edição já esgotada)

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