terça-feira, 10 de março de 2009

Da Exigência do Teatro
ao Homem-Teatro

(O presente artigo, aqui reduzido, foi extraído do livro "Artaud e o Teatro", de Alain Virmaux - Editora Perspectiva, tradução de Carlos Eugênio Marcondes Moura, São Paulo, 1978)


O SOFRIMENTO

Fale-se ou não de teatro, em Artaud tudo começa pelo sofrimento. É o coeficiente invariável que é preciso colocar na base de todo estudo concernente a ele, sob pena de contra-senso. "Na obra de Antonin Artaud, desde seus princípios até o seu final, há uma persistente continuidade", escrevia Tristan Tzara, "é a da dor corpórea projetada sobre a vida mental". Sua existência é balizada por tratamentos, curas diversas, múltiplas temporadas em clínicas, em casas de saúde, em sanatórios. Desde a meningite da qual escapa, por pouco, aos cinco anos até o câncer no reto, que finalmente o levou, ele foi como um predestinado à doença. Entrementes, nenhuma época de sua vida escapa totalmente ao mal. Esse mal tem várias facetas, mas para Artaud tudo se reduzirá ao Mal único, ao sofrimento único de existir.
Sofrimento muito agudo, entrecortado por raros intervalos, atestados por diversas cartas. Mas como Artaud deu importância fundamental - e especialmente na Correspondência com Jacques Rivière, que esclarece toda sua obra futura - à impotência criadora que lhe provinha de seu mal, ficou um pouco esquecida a noção de que esse mal era também e em primeiro lugar físico. Março de 1929: "A horrível compressão da cabeça e do alto da coluna vertebral, o peito opresso, as visões de sangue e de morte, os torpores, as fraquezas sem nome, o horror geral em que me encontro margulhado com um espírito no fundo intacto, tornam inútil esse espírito". Julho de 1930: "A opressão sobre a nuca é sempre arrasadora, cada vez que pretendo me pôr a trabalhar". Janeiro de 1932: "Minhas lutas não são as de um cérebro que vai bem". Constatação sempre retomada, apenas mais insistente nas cartas aos médicos.
E por certo, mesmo nas cartas a Rivière (1923-1924), encontra-se a menção à dor física: "Eu sofro, não apenas no espírito, mas na carne e na minha alma todos os dias". Mas nisto Artaud não insiste, preocupado sobretudo em fazer o interlocutor compreender "o desmoronamento central da alma, essa espécie de erosão, essencial e ao mesmo tempo fugaz, do pensamento". Ele voltará a tratar várias vezes desse fenômeno, e a descrição quase clínica, ou ao menos serena e metódica, que dele fazia a Rivière transformar-se-á pouco a pouco numa espécie de lamento obsedante em que o físico e o mental não mais se dissociam: "Sempre senti essa desordem do espírito, esse aniquilamento do corpo e da alma, essa espécie de contração de todos os meus nervos em períodos mais ou menos aproximados". Pode-se notar que mesmo o sofrimento puramente psíquico se exprime geralmente em termos físicos: "Eu sinto sob meu pensamento um chão que desmorona". Com variantes, essa imagem de erosão é a que retorna mais frequentemente.
Deixando de lado o aspecto clínico do fenômeno, consideremos especialmente sua dupla incidência: ela dá a Artaud a sensação de uma definitiva impotência criadora; deixa-lhe no entanto bastante força e lucidez para expor seu mal. Tormento agudo, mas não mortal; lancinante e corrosivo, mas não fulminante, mantém-se no nível exato, onde possa lesar a vida sem paralisá-la completamente, onde possa corroê-la sem destruí-la de imediato. "Impossível caminhar sem tropeçar, sem perder as forças, e no entanto sem nunca chegar ao fim das forças", escreve Roger Laporte.
Com o correr dos anos, a tortura se agrava. Descrição inquieta, interrogação angustiada, furor, sufocação, grito: Artaud passa de um estágio a outro, mas o mal progride seguindo uma linha quebrada. O grito, por exemplo, aparece muito cedo, e é imediatamente dilacerante: "Eu não tenho vida! Eu não tenho vida!!! Minha efervescência interna está morta!". Muito depressa nasce também a certeza de uma maldição e a convicção de que o sofrimento não provém de seu próprio ser, mas de uma vontade má que o atinge do exterior: "Asseguro-te que não há nada em mim, nada naquilo que constitui a minha pessoa, que não seja produzido pela existência de um mal anterior a mim mesmo, anterior à minha vontade, nada em nenhuma das minhas mais hediondas reações, que não venha unicamente da doença e não lhe seja, em qualquer dos casos, imputável!". Entre a análise metódica e a raiva exasperada, a maior parte da obra e quase toda a correspondência são consagradas a dizer a outrem, ou melhor, a tentar relatar incansavelmente a tortura indizível.
A mais surpreendente descrição que Artaud nos deixou de seu mal talvez não se encontre nas cartas. Dirigindo-se a Rivière, aos Allendy, ao Dr. Soulié de Morant, ele procura tornar seu caso inteligível, traduzi-lo numa linguagem compreensível, colocar-se ao alcance de seus interlocutores. Ao contrário, num roteiro datado de 1925-1926 - "Os Dezoito Segundos" -propõe uma espécie de transcrição direta de seu estado interior, de seus males e dos fantasmas que deles resultam. Embora o herói evolua num universo imaginário, a fabulação é tão perfeitamente transparente que nos desvenda o autor no primeiro lance, por assim dizer. Pondo de parte a originalidade técnica daquele roteiro, como não reconhecer Artaud nesse homem vestido de negro, de olhar fixo, de quem se diz ser um ator "no ponto de atingir a glória?".
"Foi acometido por uma doença esquisita. Tornou-se incapaz de atingir seus pensamentos; conservou sua lucidez intacta, porém a mais nenhum pensamento que se lhe apresente ele consegue dar uma forma exterior, isto é, traduzi-lo em gestos ou palavras apropriadas. As palavras necessárias lhe faltam, não respondem mais ao seu apelo, ele se vê reduzido a assistir a um desfile interior feito apenas de imagens, um acúmulo de imagens contraditórias e sem grande relação umas com as outras". Isso o torna incapaz de misturar-se à vida dos outros, e de entregar-se a uma atividade...De repente batem à porta. Entram esbirros de polícia. Atiram-se sobre ele. Colocam-lhe a camisa de força; é levado para o manicômio. Torna-se realmente louco...Mas uma revolução varre as prisões, os sanatórios, e as portas dos hospícios se abrem; ele é solto. É você, o místico, bradam-lhe, você é o Mestre de todos nós, venha. E, humildemente, ele diz não. Mas é arrastado. Seja rei, dizem-lhe, suba ao trono. E ele, trêmulo, sobe ao trono...Pode ser tudo, sim, tudo, salvo o domínio de seu espírito...Ele não é sempre senhor de seu espírito...Se a gente pudesse apenas ser senhor de sua pessoa física. Possuir todos os meios, poder fazer tudo com as próprias mãos, com o próprio corpo..."
Talvez nenhum outro texto de Artaud ilustre tão fielmente a fórmula inicial de "O umbigo do limbo": "Lá onde os outros propõem obras, eu não pretendo senão mostrar meu espírito". E essa definição de sua atitude criadora relaciona-se diretamente com nosso propósito: para explicar aos outros homens a retração íntima de seu ser e a castração insensata de sua vida, Artaud procurará mostrar. Exporá aos olhos de outrem o funcionamento de sua vida interior. Assim, a obra recobre a vida: "Não concebo uma obra como separada da vida". Desde então, essa necessidade de identificar vida e criação desemboca numa saída lógica: o recurso ao teatro.

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