quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Ritual
A. E. Green

Desde os primeiros estudos sobre religião na Grécia antiga, a relação entre ritual e teatro, e até mesmo a derivação deste último a partir do primeiro, tem sido um dos pontos fundamentais da história teatral e da análise dramática, e um elemento importante em determinadas formas de prática dramática do século XX. Há um perigo inegável em forçar essa relação de analogia como uma evolução genérica e cronológica. Essa última, muito comum na história teatral, é vista mais claramente na análise do drama popular, onde toda manifestação de atividade teatral da classe trabalhadora tradicional, especialmente se de origem rural, não é vista como um fenômeno com sua própria história (possivelmente bem curta), mas sim como um resquício adulterado de um antigo ato religioso ou mágico.
Ao mesmo tempo, ainda é válida a observação de que tanto o ritual quanto o drama são “as coisas já feitas”, o que enfatiza em ambos a ação ao invés do agente, e direciona a atenção para o concreto e o real ao invés de para o metafísico e o que parece verdadeiro.

Encenação
Tanto o drama quanto o ritual tratam de relações sociais e ambos o fazem através da encenação dessas relações por pessoas. Os religiosos acreditam que Deus está presente na hóstia e no vinho – é aceitável que o padre segurando o cálice se apresente como um foco de atenção. Do mesmo modo, querer saber se um espectador em um teatro adota uma “suspensão da incredulidade” contra a sua vontade ou não, e o que exatamente isso significa, pode resultar em um debate interminável. Mas não há dúvida de que um ator representando um assassino apenas imita o assassinato de um outro ator, que representa a vítima. Além disso, nos dois casos, as relações sociais são altamente definidas.
De acordo com o antropólogo Edmund Leach, a própria idéia de “relação social” é uma abstração; não é algo que possa ser observado. O que se observa são formas de cumprimento, expressões de deferência, gestos de afeição, a maior parte “ritualísticos”, no sentido de que os modos e significados são determinados e herdados culturalmente.

Sentido
Esse fato não se altera simplesmente porque os fazemos sem pensar, já que uma das funções do determinismo cultural é exatamente analisar as coisas que fazemos sem pensar. Entretanto, até as mais simples ações rotineiras mudarão de sentido de acordo com o contexto. Nas culturas ocidentais, segurar a porta aberta para alguém passar é um ato de cortesia. Quando se trata de duas pessoas completamente estranhas, do mesmo sexo e de idades parecidas, a função depende apenas de quem chegar primeiro, ou de quem tenha mais propensão aos bons modos.
No entanto, se uma das pessoas for homem e a outra mulher (conhecidos ou não), surge um significado diferente, derivado de muitas outras noções sobre o papel dos homens e das mulheres, impondo ao homem a obrigação de segurar a porta. Por fim, se a mulher também for a rainha da Inglaterra, é praticamente impensável que o homem não lhe dê precedência. Nesse caso, além do sexo também está envolvido o status. Tanto o ritual quanto o drama pegam esses atos rotineiros, bem como seus significados determinados pelo contexto, e os exageram, estilizam, refinam e arranjam em uma forma de seqüências expressivas de símbolos visuais e auditivos.

Identidade
A partir daí, no entanto, a identidade entre ritual e drama termina; os meios que eles têm em comum são aplicados para fins diferentes. É provável que pontos em comum permaneçam tanto na prática quanto no princípio, mas o ritual e o teatro situam-se em pólos opostos de um contínuo funcional. Enquanto o teatro restringe-se a comentar as relações sociais, o ritual também trabalha com elas, mas a reforça e altera.
Essa função e a distinção entre o teatro e ritual são claramente vistas nos ritos de passagem, como a cerimônia de casamento. A jovem que se veste com roupas cerimoniais para representar Hipólita no ato final de Sonho de uma noite de verão é uma atriz representando uma noiva, o que ela vai fazer repetidas vezes enquanto a peça estiver em cartaz. A encenação pode ser repetida infinitamente e sendo assim, é um laboratório útil para a observação dos relacionamentos sociais. A jovem que se veste com roupas cerimoniais na manhã do dia do seu casamento é uma “noiva”, a partir daquele momento, e permanecerá assim até que ela e seu “noivo” sejam declarados “marido e mulher”. Em princípio, sua ação não pode ser repetida.

Status
A mudança de status e de papéis efetuada pelo ritual de casamento não pode ser revertida. Um detalhe jurídico ou eclesiástico pode determinar a anulação do ritual, e assim considerá-lo como não tendo acontecido; caso contrário, a mulher cujo marido tenha morrido se torna “viúva”, e a mulher cujo casamento se desfaça torna-se “divorciada”. Nenhuma mulher que tenha participado de um ritual válido pode reverter o seu status para “donzela” ou “solteirona”.
Os constrangimentos sociais e lingüísticos sofridos (ainda) pelos divorciados são fortes indicadores da capacidade do ritual em não apenas descrever a mudança de status e papel, mas de constituí-la. “Com esta aliança eu vos declaro marido e mulher” não é uma exclamação descritiva, e sim uma exclamação realizadora.

Relacionamento
Não somente duas pessoas, mas duas famílias se unem em um relacionamento que não existia antes, o que acarretará determinadas obrigações. Mesmo a “amizade” pode estar sujeita a obrigações, pois a união acidental de duas pessoas em uma nova unidade social torna inevitável encontros e relacionamentos com pessoas conhecidas não por escolha própria.
O interesse em tais cerimônias é que elas criam novos arranjos sociais de forma real (pessoas reais são reposicionadas e redefinidas dentro da rede social), enquanto reforçam uma estrutura de relacionamentos existente, além de fazer isso utilizando formas teatrais. Pois é fundamental para o evento, e para sua força constitutiva, que não haja apenas simples protagonistas e um mestre de cerimônias, mas também uma platéia, cujo testemunho ratifica a validade da cerimônia e do reposicionamento específico em curso. Além disso, assim como no teatro a platéia concorda em aceitar a ficção, na cerimônia de casamento a congregação aprova não apenas o ato em si, mas toda uma estrutura de valores dentro da qual ele existe.

Ambigüidade
O ritual é sempre uma força ambígua. A sua eficácia depende da aceitação pública de um status quo. Quesalid, o índio da tribo kwakiutl que tentou mostrar que os pajés eram uma farsa e para sua surpresa ficou com fama de praticante, não se tornou um xamã por ser um bom curador: ele se tornou um bom curador porque era um xamã. Os seus pacientes não se impressionaram quando ele revelou os truques do ofício, pois estavam mais interessados no fato de que estavam doentes e ele era capaz de curá-los.
Da mesma forma, um havaiano nativo de Queensland, que adoece e morre devido às feitiçarias do mago, não adoece porque um osso foi apontado para ele, mas porque ele acredita no poder do mago em lhe causar danos. Os efeitos, tanto para curar como para causar danos, são psicossomáticos, sendo explicados pela medicina. O simbolismo é apenas um mecanismo de ativação de forças psicosociais poderosas que atuam no organismo.

Mágicos
Isso não é nenhuma surpresa. Os homens e as mulheres são organismos biológicos sujeitos aos mesmos ritmos internos dos outros seres vivos. Isso é uma das coisas celebradas pelos rituais baseados no ciclo da vida, e que os mágicos podem explorar para o bem ou para o mal. Quase sempre os rituais estão ligados às estações e aos ciclos, tanto os naturais quanto os sagrados e seculares, ajustados periodicamente – um exemplo são as celebrações das colheitas que dependem do conteúdo e da época em relação à estação ou ao clima, como também são, do ponto de vista do calendário, as festividades de carnaval anteriores à Quaresma. Mas a idéia de sazonalidade está mais profundamente impregnada na cultura (e especificamente na sua expressão de ritual) do que mostram esses simples exemplos.
As festividades anuais marcam o tempo, como postes e cercas marcam o espaço; sua recorrência, geralmente de uma forma que muda muito lentamente e que dá a impressão de permanecer a mesma, ao mesmo tempo proporciona um confortável aspecto de continuidade à vida humana e lembra os participantes de que o seu próprio tempo está passando.

Ritmo
Por sobre este inexorável ritmo terrestre acontece a mudança dos estágios do homem, a passagem do nascimento à morte celebrada nos rituais baseados no ciclo da vida. Os dois tipos de sazonalidade são iguais no sentido de que, embora não seja propriamente um rito de passagem, qualquer festividade anual pode envolver pessoas que não estavam presentes anteriormente (o primeiro Natal do bebê, o primeiro dia na escola ou na creche) e perder antigos participantes, devido às suas mortes. É importante notar aqui a diferença a mais entre ritual e teatro: o último quase sempre situa a ação em um tempo ficcional, enquanto a ação do primeiro sempre está no tempo real.
Esses são, então, os dois eixos em cuja interseção o ato do ritual se encontra: a passagem do tempo e a relação recíproca dos grupos humanos através de suas inevitáveis perdas, substituições e redistribuições. Em qualquer ritual, um dos eixos pode estar mais em evidência, mas o outro está presente de forma mais sutil, e mostra uma tendência a exigir maior proeminência mesmo quando a função imediata do ritual não peça.

Justiça
Isso fica claro nos rituais ligados à administração da justiça. Freqüentemente são vistos determinados elementos “ritualísticos” em procedimentos jurídicos: as elaboradas cortesias formais, o uso de uma linguagem especializada, a estilização da apresentação de provas em uma guerra de palavras entre a “acusação” e a “defesa”, o papel essencial dos jurados na redefinição do status do “acusado”. O evento é estruturado para que se declare ser ou não o acusado uma pessoa adequada a manter sua posição na sociedade.
Quanto ao elemento tempo, este é menos notado. Nos tribunais ingleses ele se manifesta nas vestimentas arcaicas dos seus membros. Assim como as roupas do padre dão a ele uma identidade além da sua pessoal, as togas e perucas dos juízes e advogados os declaram representantes da lei, um valor abstrato e uma instituição cuja existência é anterior aos seus nascimentos – e que por conseguinte se estenderá além de suas mortes. Em função das provas que os advogados apresentarem e da opinião dos jurados, o juiz dará seu veredicto. Se considerado inocente, o acusado é posto em liberdade. Em caso contrário, uma sentença será proferida, até mesmo estipulando um determinado prazo de vida.

Execuções
A última frase é um exemplo extremo da capacidade do ritual de controlar o tempo e espaço sociais. Não é surpresa que as execuções públicas fossem eventos populares por toda a Europa, até que a crescente aversão por violência pública levou à abolição desses eventos. Estes, no entanto, foram defendidos por um certo Dr. Johnson, num famoso protesto contra abolição das execuções públicas: “Se elas não tivessem espectadores não serviriam aos seus propósitos”. Para Johnson, grandes multidões se juntavam para ver o “auto de edificação” da justiça pública, no qual os crimes dos condenados eram re-encenados no seu próprio corpo, confissões públicas (às vezes compostas em versos) eram feitas no cadafalso e onde o condenado poderia ser maltratado mesmo depois de morto, nas terríveis práticas de esquartejamento e decapitação. O corpo enforcado ou a cabeça pendurada numa lança permaneceriam como imagens assustadoras das conseqüências da má conduta.
Ao mesmo tempo, o evento tinha um ar estranhamente festivo. Na Londres do século XVIII, um condenado geralmente vestia-se de noivo para o seu passeio final até Tyburn, e, dependendo do sentimento público a seu respeito e de seu crime, poderiam lhe jogar ramalhetes ao invés de cacos de tijolo. De qualquer forma, ele não deixava de ser um herói (ou um vilão) no sentido teatral, e os eventos desse dia seriam o último ato de sua tragédia.

Charivari
Menos radical no seu efeito sobre o indivíduo, mas em compensação ainda mais claro como prova da força das imagens do ritual, o difundido ritual jurídico do charivari não é organizado pelo Estado, e sim pela comunidade, e não é aplicado a ofensas criminais, mas a atos anti-sociais como desonestidade nos negócios, desarmonia conjugal ou casamentos inadequados, como o de um viúvo já idoso com uma jovem virgem. Normalmente a comunidade, por meio de alguns representantes, expressa sua desaprovação através de uma procissão com música barulhenta (batendo em latas, panelas, etc.) até a casa do transgressor, em geral bem cedo ou tarde da noite, de forma a causar o máximo de tumulto e publicidade à ofensa, e o máximo de constrangimento ao infrator.
Em acontecimentos mais elaborados, a procissão pode incluir um boneco do infrator, montado ao contrário em um burro ou preso a um poste, sendo subseqüentemente enforcado ou queimado. De qualquer forma, o infrator tem duas opções: comprometer-se a corrigir seu comportamento – e assim assegurar sua reintegração à sociedade – ou pagar para que os músicos barulhentos se retirem.
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(Extraído de The Cambridge Guide to World Theatre, ed. por M. Banham, Cambridge, 1988. Tradução de Luis Gustavo de Moura Brasil)

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