sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Réquiem

Lionel Fischer

Personagens
Inquisidor
Juiz
Réu
Ator

Cenário Palco vazio.

(O Ator dirige-se sempre à platéia. Ele não participa efetivamente da cena, cuja atmosfera deve sugerir um tribunal da Inquisição)

Inquisidor - Para que haja ordem é necessário a um homem, na iminência de cometer uma ação que mereça a forca, ter consciência de que a forca o aguarda.
Ator - É bem provável que nenhum de nós se encontre na iminência de cometer uma ação que mereça a forca. É quase certo que nenhum de nós se encontre na iminência de cometer qualquer tipo de ação. Mas independentemente do que nós façamos ou deixemos de fazer, a forca continuará a existir. E o que é pior: talvez ela não seja mais um mero instrumento, mas tenha se transformado na própria ordem.
Réu - Estejam certos, meus senhores, de que essa condenação me absolve. O meu caminho termina aqui. Hoje. Não por acidente ou doença, mas porque eu vivi. E isso me conforta. Estejam certos, meus senhores, de que não há destino que não se transcenda pelo desprezo.
Juiz - O réu, mediante o desprezo, transcende seu destino.
Réu - Não apenas o réu. Todos podem fazê-lo.
Juiz - Não apenas o réu transcende seu destino mediante o desprezo como todos os demais podem igualmente fazê-lo.
Réu - Sim, podem! Poderiam...mas na realidade ninguém se interessa pelas opiniões dos outros. Nós somos sós. Terrivelmente sós. As nossas mãos nasceram cansadas. O nosso gesto, preguiçoso. A nossa ajuda, tardia.
Juiz - Essa lamúria deve ser anexada ao processo como uma espécie de arrependimento?
Réu - Eu não falava com os senhores. Seria perda de tempo. Falava comigo.
Inquisidor - E é exatamente por isso que você está aqui. Você foi surpreendido monologando em voz alta. Foi lhe perguntado se você era um ator: você disse que não. Foi lhe perguntado se você era um louco: você disse que não. Depois dessa atitude, só lhe restaria a loucura ou a arte. Você não se enquadrou em nenhuma delas. Portanto, você morre. Por demonstrar-se incapaz de se autodefinir.
Réu - É curioso o julgamento humano. Não permite a uma pessoa travar diálogos consigo própria: ou é louca ou está representando. Mas pode ser que um dia passem a considerar a loucura como uma forma de representação. Aí, talvez, nós possamos monologar em voz alta, livremente, em paz como a nossa solidão, num mundo repleto de atores.
Ator - É o que nós somos. Fantoches de um espetáculo violento e absurdo, no qual nos envolvemos e que nunca chegamos a compreender. Viver é se adaptar. O silêncio, a opção de sobrevivência. Todos se calam e sobrevivem. Todos aceitam e sobrevivem. Todos compactuam e sobrevivem. Transformam-se em carcaças arruinadas e pestilentas. Mas sobrevivem. “Com lama até o pescoço, mantêm limpas as unhas nas pontas dos dedos”. E se sentem felizes. E se sentem em paz. Pois sobrevivem.
Réu - Eu me confesso culpado e aceito de bem grado qualquer tipo de castigo. Me confesso culpado de me haver fartado das pesadas condições impostas. Me confesso culpado de ter enfiado as mãos no lodo, de ter me atirado no fundo do poço. De ter sido alguém cuja vida não foi mais que uma procura. Me confesso culpado de haver tentado ser otimista num mundo amargo. De ter buscado o sorriso e encontrado o silêncio. De haver estendido as mãos e agarrado o vazio. De ter fechado os olhos e sentido medo. Sim, reconheço: sou culpado. Eu rasguei os invólucros. As máscaras que vocês tentaram colar no meu rosto não aderiram e a visão de minha face descoberta se tornou insuportável. Sim, sou culpado de um dia ter dito em lugar público que mais verdadeiro que o intercâmbio de falas é o contato das mãos. Sou culpado de confessar que não me esquecia das flores somente porque eram belas, mas sobretudo por seu perfume. Sou culpado de tentar sentir o mundo de modos diferentes, de procurar a felicidade transgredindo seu conceito. Sim, eu me confesso culpado. E se houvesse tempo, meus senhores, eu me transformaria num rinoceronte. Mas é tarde. Tarde demais para se inventar uma nova atitude. O mundo é um jogo de cartas marcadas. Sempre haverá jogadores desonestos. E sempre haverá quem embaralhe e distribua a sorte.

(As luzes caem em resistência)

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