quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Que é mise-en-scène?

Anatol Rosenfeld


O teatro é a arte que transforma a literatura dramática em espetáculo. É a mise-en-scène, a encenação que adapta a peça teatral ao palco, valorizando as linhas principais e destacando o caráter peculiar de sua beleza. As obras dramáticas - embora em geral dotadas de vida cênica – representam por si só apenas um gênero literário como a poesia lírica, o romance. São diálogos livrescos. Por maiores que sejam suas virtudes teatrais inerentes, tais como ritmo específico, movimento, dramaticidade, diálogo vivo, é só a encenação que lhes dá verdadeira vida, pois é só no palco que adquirem sua plena riqueza, graças à colaboração dos técnicos, atores cenógrafos etc. É no palco que se transformam em vida e encontram sua expressão real. É a representação que lhes confere a totalidade de sua força. Sem o teatro, elas têm apenas uma existência potencial, por mais geniais, por mais brilhantes e admiráveis que sejam. Sua verdadeira força não se revela ao leitor, mas somente ao espectador.
A encenação é, portanto, a arte de animar e adaptar, por todos os meios que se coadunam com a necessária lealdade ao texto, uma obra literária de forma dramática ao palco.

Meios
Os meios para atingir esse fim são os mais diversos. Abrangem a decoração, o trabalho dos atores, sua gesticulação e interpretação, a atmosfera geral em que a peça se desenrola, a iluminação, os trajes dos atores que devem corresponder à decoração e a apresentação plástica, o concurso acústico dos ruídos anteriores e posteriores etc.
É evidente, portanto, a enorme complexidade de uma encenação adequada, para cuja realização se contam com numerosos técnicos e que deverá, em cada caso, resolver às vezes problemas extremamente difíceis.
Mas todo esse aparelho deve servir aos fins principais da encenação – quais sejam os de dar à peça seu “clima” psicológico, traduzindo todas as sutilezas contidas nas entrelinhas do texto e que devem ser sugeridos, sem revelação brutal, ao espectador.
Portanto, o encenador, o metteur-en-scène, não colabora apenas com o cenógrafo, os técnicos de improvisação e de acústica, o maestro de uma eventual orquestra, mas também com os atores, de quem conhece a expressividade, as possibilidades físicas e pantomímicas, a sonoridade da voz, a capacidade de se adaptarem em determinado papel e aos quais sugere ou com os quais discute a maquilagem, os movimentos, a dicção específica, a interpretação adequada.
É evidente que é um técnico completo e conhece todas as vantagens e desvantagens do palco em que apresentará determinada peça. Que está em contato com o contra-regra e os auxiliares que regulam as entradas em cena; que confia na colaboração dos pintores que se encarregam da execução dos cenários, das tabuletas, placas etc.; que sabe da eficiência dos maquinistas que movimentam os cenários e armam as cenas; que conhece cada alçapão – o chão móvel por onde surgem e desaparecem em certos momentos determinadas personagens; que está em casa, no palco – no urdimento, naquele aparente caos de pano de fundo, rompimentos, bombolinas, fraldões, gambiarras, contrapesos, fios de arame, cordas, cavilhas, escadas de comunicação, corredores, tamboretes, onde os “homens de varanda” exercem sua atividade anônima; e da mesma forma está em casa debaixo do palco, no subterrâneo, de onde se movem os bastidores laterais, presos a carro (por intermédio de tangões), giram no primeiro pavimento do subterrâneo. Os eletricistas são seus amigos especiais, pois deles dependem do bom funcionamento da força motriz, dos holofotes e refletores e enfim, todos os efeitos elétricos. Ele briga com alfaiates e costureiras e sugere ao caracterizador uma nuança na maquilagem de uma personagem importante.

Regra
Em toda encenação é regra essencial que ela, por mais rica, genial, multiforme e ampla que seja, nunca se deve tornar autônoma, o que significaria uma traição ao espírito da peça, que ela adapta ao teatro – a não ser que se trate de revistas ou obras sem valor próprio. Uma encenação magnífica que não se subordina lealmente e com humildade ao espírito da peça é um fracasso. A encenação desenfreada, que se considera o seu próprio fim, é a ruína do verdadeiro teatro artístico.
De outro lado, todo meio adequado para realçar o espírito, a psicologia, a atmosfera duma peça pode ser empregado a justo título. E a arte do encenador tem de ser tanto maior quanto mais delicado e sutil for o espírito da peça. As obras em que “muito acontece” só precisam do concurso de dois técnicos; já as peças em que os acontecimentos são de ordem predominantemente íntima e psicológica, estas fracassam sem a arte de um grande encenador.

Exigência
Decorre daí que toda peça exige uma encenação sui generis, de acordo com o seu estilo e ritmo íntimos. Isso naturalmente não exclui a variação no que se refere à interpretação por parte do metteur-en-scène. Uma peça como Hamlet, de Shakespeare, passou por mil variações no tocante à encenação. Cada época interpreta dada obra à sua maneira. É evidente, no entanto, que o ritmo íntimo e o espírito profundo da peça, embora interpretada em diversas épocas de diversas maneiras, precisam ser respeitados. Admitem-se as experiências e renovações de grandes encenadores como J.L. Barrault, Max Reinhardt ou Erwin Piscator. Exige-se, todavia, que a essência da obra não seja sacrificada às imposições de um encenador demasiadamente “original”.
Assim, uma peça de Racine exige, forçosamente, uma encenação diversa da de uma obra de Hugo von Hofmansthal. Ibsen tornar-se-ia ridículo se fosse aplicada às peças da sua fase realista uma encenação muito estilizada que, no entanto, pode adaptar-se perfeitamente a uma obra de Maeterlinck. Dentro da obra de um só autor como Gerhart Hauptmann há algumas que requerem uma encenação naturalista, e outras cujo valor só se revela em estilizações à maneira do Teatro de Arte de Moscou com suas encenações feéricas (do período posterior).

Escolha
A responsabilidade da escolha de uma apresentação realista ou estilizada, simbólica – os pólos entre os quais se movem todas as encenações - recai sobre os ombros do encenador, que geralmente, como é evidente, pertence a determinada escola e, ao invés de escolher a encenação, escolherá a peça que se enquadra nos preceitos de sua escola. A encenação naturalista procura copiar nos mínimos detalhes a realidade, com todos seus pormenores menos poéticos, procurando apresentar a vida “vista através de uma janela”, como se expressou Arno Holz, autor alemão da fase naturalista.
Por conseguinte, encenador naturalista colocará os atores em posições adequadas e timbrará em não dar a mínima atenção ao público, tentando eliminar todas as convenções teatrais. A sala de espetáculo é a quarta parede, para qual o ator, como na realidade, eventualmente vira as costas. Já a encenação estilizada procurará criar uma transposição poética, lançando mãos de símbolos e de caracterizações idealizadas ou carregadas de significados subentendidos.
Mas é evidente que mesmo o teatro realista não pode evitar estilizações. Toda arte, e o teatro em especial, é ligada a convenções já tornadas inconscientes e quase despercebidas, e nenhuma arte existe que queira imitar simplesmente a vida. Toda arte condensa, essencializa, dinamiza a vida, idealiza-a ou lhe exagera os defeitos, dramatiza-a, enche-a de significados, deforma-a; em uma palavra, estiliza-a. Mesmo a fotografia artística se esforça por tornar-se cada vez menos “fotografia”, imitando a pintura, isto é, estilizando o objeto.
Por mais naturalista que uma peça seja, tem de condensar, em poucas horas, o que talvez represente na realidade um processo de dias ou meses; suas figuras falam com relativa perfeição, são maquiladas para parecerem reais (pois se não o forem, pareceriam no palco irreais) e movimentam-se segundo rigorosas prescrições ao longo de linhas cuidadosamente traçadas num palco que é subdividido em vários planos e segmentos, em cada um dos quais o ator tem sua precisa colocação. Um fragmento da vida real levado à cena sem estilização nenhuma, sem ser submetido às convenções teatrais (o que, aliás, seria impossível), teria seu fracasso total garantido. A estilização começa no momento em que o autor, por mais realista que seja, procura transpor em cenas dramáticas um fragmento significativo da “vida real”.

Perigo
Um dos grandes perigos que ameaçam o teatro verdadeiro é a mania de encenações excessivamente luxuosas. É evidente que há certas peças que exigem grandes recursos para levá-las à cena. Todavia, um teatro que se entrega ao vício de encenações excessivamente “deslumbrantes” vai inevitavelmente à falência. Um grande encenador realiza com poucos recursos milagres. E as peças imortais dos autores gregos e de Shakespeare não necessitam, em virtude da sua dramaticidade íntima e da sua linguagem tremendamente intensa, de encenações dispendiosas. Shakespeare escreveu peças geniais, em parte porque, contando com os recursos relativamente pobres do teatro da sua época, tinha de dar todo o poder à palavra. Muitos autores fornecem hoje peças apenas aproveitáveis porque contam de antemão com apoio de grandes encenadores, que realizam verdadeiros milagres para transformar um “abacaxi” em êxito sofrível.
Mas se a pobreza da encenação não é uma virtude pode-se dizer, contudo, que certas peças, em que o texto é de suprema importância, ganham com a simplicidade e discrição da mise-en-scène. Um ambiente demasiadamente rico, um manjar para os olhos, desviaria a atenção do público do essencial, isto é, neste caso, o texto.

Cultura
É óbvio que o encenador tem que ser um homem de grande cultura, de visão aguda em matéria teatral, dotado de grande sensibilidade estética. Com freqüência tem de decidir sobre questões de complexidade suprema. Levando à cena uma peça da época romântica, cujo sujet se passa naquela mesma época, terá de decidir, de início, se o apresentará no ambiente daquela fase histórica ou se o transporá para nossa atualidade. Em certos casos, uma peça ganha com essa transposição, em outros fica arruinada em virtude das suas íntimas ligações com a época em questão.
Uma peça de Ibsen, como Casa de bonecas, apresenta-se convenientemente nos trajes típicos do início do século (embora em determinados países, de costumes atrasados, possa ser apresentado em trajes atuais). Outras peças de Ibsen, também da sua fase realista, suportam uma transposição com trajes modernos porque seus problemas ainda são os nossos.
E são conhecidas as tentativas de levar à cena mesmo peças de Shakespeare em trajes e com ambientes modernos.

Confusão
Não confunda o encenador com cenógrafo, que realiza decoração plástica e pictórica do palco, embora grandes cenógrafos tivessem se tornado, eventualmente, encenadores (André Bersacq, Henri Brochet) e deva haver estreita colaboração entre eles. A encenação não consiste apenas na decoração. Tampouco se confunde o encenador com o ensaiador, diretor de cena ou o contra-regra, que regulam as entradas em cena, marcam os movimentos dos atores, ensaiam com eles e supervisionam o serviço no palco, embora uma pessoa assuma com freqüência várias funções.
Na França, o régisseur é responsável pelo espetáculo no que se refere ao serviço dos atores, ao passo que na Alemanha o régisseur é aquele que na França se chama metteur-en-scène. No Brasil usam-se termos como ensaiador, diretor de cena e encenador sem muita discriminação, visto que freqüentemente as funções se reúnem numa só pessoa. E o contra-regra é o homem que, com seus auxiliares, regula a entrada em cena dos atores e se encarrega dos adereços necessários no palco.
Mas a encenação, como decorre do que foi dito acima, transcende de longe a simples marcação (a mise-en-place), a minuciosa prescrição dos lugares que os atores têm de ocupar no palco e das suas deslocações e seus movimentos no decorrer do espetáculo; ela é também mais do que a decoração, o desempenho dos atores, o jogo das luzes e dos efeitos acústicos. Ela é ainda mais do que a soma de tudo isso, pois não é uma soma: é uma totalidade integrada em que cada parcela está em íntima correlação com a configuração total.
Na verdade, a encenação cria aquela íntima harmonia, aquele equilíbrio inefável entre a peça e sua realização, aquela coordenação de estilo entre aquela e esta e requer a intervenção de um verdadeiro artista, de um homem de teatro que têm o pleno domínio dos seus meios, que conhece todas as sutilezas do ofício e que, todavia, sabe ser suficientemente humilde para refrear seu impulso criador de modo a interpretar lealmente o espírito da peça.
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O presente artigo foi extraído do livro Prismas do teatro, que recomendamos com entusiasmo (Editora Perspectiva, Coleção Debates, São Paulo, 1993).


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