quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Ao encontro do Cavalinho Azul:
UM ENSAIO

Pedro M. Kosovski

“Nessa admiração que ultrapassa a passividade das atitudes contemplativas, parece que a alegria de ler é o reflexo da alegria de escrever, como se o leitor fosse o fantasma do escritor”
Gaston Bachelard

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O presente artigo é resultado do Trabalho de Conclusão do Curso de Psicologia da PUC-RJ no ano de 2005, no qual partimos das imagens e personagens apresentados na peça O Cavalinho Azul, de Maria Clara Machado, para uma análise simbólica orientada pelo referencial teórico da psicologia analítica; conceitos como criatividade, arquétipo e processo de individuação sustentam o campo de nossa discussão. (Pedro M. Kosovski)

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Apresentação
O Velho João de Deus conta a história de Vicente – um menino que diz ter um cavalo azul, apesar de todos afirmarem ser um pangaré. Para ter o que comer, o pai decide vender o pangaré. Inicia-se, então, a aventura de Vicente à procura do cavalo pelo Brasil afora, onde cruzará com os mais distintos personagens, até o encontro com cavalo azul real.
Em nosso estudo destacamos um olhar sobre a trajetória. A atração provocada pelo o cavalo azul movimenta o menino em sua direção; o encontro é resultado de uma trajetória. O símbolo do cavalo azul estende-se por todo caminho, nas experiências e relações estabelecidas anteriores ao próprio encontro, em um processo de conscientização e revelação de uma personalidade, que culminará na sua realização.

O velho conta a história do menino
Na maior parte da peça o cavalo azul é uma presença invisível, uma espécie de prolongamento imaginário de Vicente. Desse modo, um terceiro personagem é imprescindível para estrutura central da peça – o narrador João de Deus. Um velho conta a história de um menino. Nessa relação de oposição temos um dinamismo complementar – onde um esbanja vitalidade, o outro prudência e sabedoria; onde um tem ingenuidade, o outro ironia; enquanto um age, o outro contempla, e assim por diante.
Consideramos o menino como aquele que contém, em sua fragilidade e pequeneza, o potencial de crescimento para iniciar sua ascensão. O velho, por sua vez, é aquele que já ascendeu ao máximo sua curva de potencialidade e começa a descer. Velho e menino estão mais próximos do que aparentam, encontram-se na mesma linha, cada qual em seu lado da parábola compartilhando uma espera semelhante – duas mortes, uma física e outra simbólica, da infância para a vida adulta. Embora estejam em pontos complementares diferenciam-se, pois o velho guarda em si a consciência de sua trajetória, e o menino, alheio a seu futuro, é puro devir.

O pangaré – contradições da realidade
A realidade seca e esturricada, a todo instante, choca-se contra a realidade subjetiva do menino dando provas de sua crueldade. Qual o sentido de um pangaré velho e fraco? A vaca dá leite, a galinha dá ovos, e se até a carroça já foi vendida, “Este cavalo só serve para comer mais dinheiro.” A saída é vender o pangaré, e em troca conseguir uns trocados para o menino ter o que comer. Mas agora que a nutrição está garantida, o menino não quer mais comer. Uma nova ameaça impõe-se diante de sua existência: a desnutrição afetiva.
A presença do pangaré é a salvação. O corpo velho e sujo representa o suporte material necessário para que as projeções imaginárias de Vicente ganhem forma. A força do pangaré, como base de realidade, possibilita um cavalinho azul vivo, e através da energia contida no símbolo redimensionam-se todos os objetos – passamos de uma paisagem condicionada e morta, a uma paisagem criativa composta por campinas verdes, rios de água branca e enormes circos, pois só assim a existência é possível!
O cavalinho azul é, acima de tudo, a possibilidade de um conhecimento real, onde o livro de estudo refaz-se em experiência imediata sensibilizando o homem para as origens. O menino descreve sua experiência: “Depois, eu monto em você e saímos atrás das capitanias hereditárias...Vai ser ótimo!”. O símbolo do cavalo traz consigo a renovação; não se trata, pois, de uma negação da realidade, mas de uma re-criação que possibilite a organização da exterioridade de um modo mais favorável à sua subjetividade.
Em uma das rubricas iniciais a autora indica: “O menino, em êxtase, procura convencer o cavalo”. Vicente luta com toda sua energia, para convencer a realidade-pangaré que um dia ela poderá galopar livremente, mas logo se zanga: “Assim você não poderá trabalhar no circo! Não pode. Veja como eu faço”. O menino não vivencia uma alucinação, mas sim o paradoxo do cavalinho azul encarnado na pele e o osso de um pangaré. A forma encontrada por Vicente, independente de seu conteúdo fantástico, soluciona temporariamente sua condição social desfavorável.
Contudo, essa situação não perduraria. O mundo externo confronta-se com o mundo interno, e cada qual a seu modo, exige de Vicente a satisfação de necessidades antagônicas levando-o a um equilíbrio insustentável. Em um mundo partido, onde as imagens não coincidem com os objetos, instaura-se um dilema: ceder ao exterior e perder a poesia ou ceder ao imaginário e perder a consciência? A realidade dominante, respaldada por sua materialidade, exibe sua brutalidade frente à sutileza dos processos imaginários, estabelecendo-se como única e verdadeira: “Que cavalinho azul, que nada! Um pangaré velho não presta mais nem pra puxar a carroça de teu pai. Cavalinho azul!...Azul!”.
O menino persiste no treinamento. Põe-se no centro do picadeiro, e puxa o cavalo pelo cabresto indicando manobras circulares, que o animal sem vida executa em um esforço sem igual. Vicente espera a tão sonhada apresentação no circo.

A perda. Iniciação do herói no mundo
“Vicente, sentado na soleira da porta, de vez em quando dá uma espiadela para fora”.
Com a venda do pangaré o mundo impele Vicente a crescer. A dicotomia pangaré-cavalo azul vivida por Vicente, na maturidade apresenta-se como um corte, uma amputação do potencial imaginário.
Para Vicente o cavalo azul perdeu-se no caminho de volta para a casa. O menino passa a esperar algo de fora – o retorno do cavalo azul perdido no mundo. A projeção imaginária rompe as paredes protetoras da casa paterna, enveredando pelo mundo e indicando que as condições anteriores eram realmente insustentáveis. O cavalinho azul expande-se em detrimento da perda do pangaré. Abre-se espaço, então, para uma transformação: faz-se necessário um cavalo azul inteiro e real, em um menor instante que seja de confluência entre imagem e objeto. Se antes o menino dependia do cavalo azul para viver, agora deparamo-nos com uma inversão significativa: é o aceno frágil e desprotegido do cavalinho no mundo que impulsiona Vicente, um herói, para sua salvação.

A grande farsa do circo americano
A experiência imaginária refugia-se em espaços restritos e bem delimitados pela cultura – o circo, o teatro, o cinema, etc. – onde temos permissão para vivenciar o criativo. A cultura, portanto, estabelece uma relação de condição, impondo limites concretos ao imaginário que assume o caráter de expressão artística. Em todo caso, esta é a forma que dispomos para manter acesas as virtualidades do viver, imprescindíveis ao ser humano.
O primeiro lugar a se procurar o cavalo é em um circo – onde se poderia achar um cavalinho azul? Desde o início, o circo é um abrigo de realidade para as invenções imaginárias de Vicente; uma referência externa que compartilha o mesmo vocabulário fantástico em suas excêntricas atrações. E mais um confronto.
O circo idealizado não corresponde ao circo real. O “Grande Circo Americano” é um espetáculo decadente, uma farsa dirigida por três bandidos-músicos, que visando unicamente obter lucro, apropriam-se do pressuposto imaginário acerca do circo para iludir seus espectadores. Com a finalidade capitalista, a ilusão – maior qualidade do circo, possibilidade de jogo, que trata da realização do invisível – desfaz-se no vazio material de suas atrações, assumindo o caráter negativo de alienação. O potencial imaginário, aliado à sua demanda afetiva, é utilizado como instrumento de manipulação e controle ideológico, laçando as bases do poder da propaganda em nossa cultura – as imagens criativas distorcem-se em simulacros, para a sustentação do espetáculo grotesco de nossa sociedade.
Um palhaço sem-graça, apresentador do show, é explorado pelos bandidos-músicos, que o utilizam como fachada de seu circo. Rotineiramente, ele apresenta as mais fantásticas atrações – que nunca se realizaram – e entre uma palhaçada fracassada e outra, anuncia o final do show justificando-se pela ausência dos artistas. Neste caso, toda a experiência criativa esvazia-se em um discurso que não se efetiva; a criatividade se apresenta apenas como um potencial inativo, e não como possibilidade viva de criação.
Vicente não encontrou o cavalo azul. Mas de certo modo, a idealização inicial do circo indicara o caminho necessário. Naquele espaço decadente e desencantado, o cavalinho azul foi recebido pela primeira vez como verdade, e atraiu o interesse de todos. Alguns o ajudariam, outros o perseguiriam, mas ninguém permaneceria indiferente à notícia do cavalo azul. Vicente sai do circo modificado; na mão direita a companhia da menina, e na mão esquerda a perseguição dos bandidos-músicos.

A meninazinha
Na peça deparamo-nos com um feminino frágil e pouco atuante; a menina é capaz de se submeter à farsa do circo como única espectadora, e de satisfazer-se, depois de uma longa jornada, com um cavalinho azul de papelão. Em contraponto, observamos a força do feminino na obra de Jung; especificamente, a anima tem como sua função ser uma espécie de ponte para o inconsciente. Na proposta junguiana, a anima se fortalece ao passo que o sujeito aprofunda os laços com o inconsciente. Em Vicente é diferente. O menino transita com intimidade por seu potencial criativo; o vínculo com o inconsciente está fortemente amarrado. Para Vicente é necessária uma experiência que aprofunde suas relações com o real, mas que não se estabeleça como um corte violento.
Tendo em vista a dinâmica compensatória entre consciente e inconsciente, propomos que a anima fortificada projeta-se na realidade em um corpo frágil de Menina. O feminino discreto tem, em sua fragilidade, a delicadeza necessária para que o real se estabeleça – não como uma ruptura, mas como uma extensão do imaginário. Através da Menina, de seu gesto de acolhimento, Vicente é suavemente conduzido para o real; em sua companhia a experiência subjetiva se torna uma aventura compartilhada, e conseqüentemente, o cavalinho azul, uma possibilidade real. A Menina nada impõe; e o real inicia-se em uma despretensiosa sugestão de caminho: “Tenho um tio no Ceará. Vamos lá primeiro?”

A perseguição da sombra
Os bandidos também foram contagiados pelo símbolo do cavalo: “Os dois meninos viajavam de dia e dormiam à noite... Mas não sabiam do perigo que vinha atrás deles. Os três velhos fingindo que eram músicos de verdade, para não serem vistos, andavam durante a noite e dormiam de dia. Os velhos, cada vez mais gulosos, só pensavam no dinheiro que o cavalo ia dar-lhes”.
Diferente dos outros adultos, onde o cavalo azul ressoava como um símbolo morto, esvaziado pela tendência materializante da realidade, nos bandidos despertou fascínio e espanto. No entanto, o que para Vicente simbolizava uma busca existencial, para os bandidos representava a ampliação dos limites econômicos – o sentido do cavalo difere em função da subjetividade que dele se aproxima, mas mantém em ambos os casos o caráter de expansão.
Tal como Vicente, os bandidos abriram mão de tudo para buscar o cavalo azul, em um esforço tão grande quanto o do próprio menino. Dá-se inicio ao jogo ambivalente do símbolo, acirrando os conflitos: o que para uns é motivo de ilusão e deformação, para outros é de transformação total dos valores da realidade. Ao longo do caminho, os bandidos contabilizavam dinheiro, ao passo que os meninos contabilizavam sonhos.

A velha-que-viu
O caminho trilhado começa a dar sinais de aproximação: uma velha viu o cavalo. A Velha-Que-Viu não enxerga mais nada – só tem olhos para o cavalo azul que a cerca por todos os lados – e até seu nome designa a experiência que a marcou para sempre.
Os bandidos, que a principio raptaram-na para descobrir o paradeiro do cavalo, logo verificaram: “Ela é doida!”. A velha foi arrebatada pelo impacto da imagem sem nenhum suporte material, e, portanto, enlouqueceu. A maioria de suas falas refere-se ao céu, ao ar ou vento: “Lá vem o Menino cavalgando no cavalo azul... cavalgando na nuvem que é preta e grita: ai!ai!ai! Quero cair, quero molhar...”. O cavalinho azul tornou-se um dragão furioso, que em uma devastação afetiva arrancou da terra toda a base, todo o sólido, e desmanchou-os no ar. A velha tornou-se um rio, e o cavalo o explora – nutre-se de sua alma e banha-se sobre seu corpo – em uma correnteza sem fim que não ampara, só afunda, afunda, afunda mais... Perdendo-se todo o fôlego de realidade.
Nesse ponto, destacamos mais uma vez a importância de uma base concreta que ampare a experiência imaginária. No caso de Vicente, a presença do pangaré possibilitava um cavalo azul de carne e osso, e mesmo depois de sua venda a referência objetiva já estava marcada em sua subjetividade.

No curral do cowboy
O Cowboy doma cavalos e prende bandidos. Em seu curral acorre um importante encontro; não do Menino com o cavalo azul (ele alimentou essa esperança e se enganou, pois lá só havia cavalos brancos), mas o encontro do Menino com os bandidos. Vicente confronta-se com o Mal, que apesar de inconsciente esteve presente durante todo o caminho, e vê a aparente pureza e bondade constitutiva se desfazerem. Para isso, nada mais apropriado que o cenário escolhido. No curral habitam cavalos, e sabemos que não se trata de ambiente limpo. O encontro com o Mal é cercado de esterco, e permeado por seu cheiro desagradável.
Irritados com o engano do cavalo, e cansados de tanta procura, os três músicos tiram as barbas postiças e revelam as verdadeiras faces de bandidos. Vicente é finalmente abatido. Pela primeira vez, a situação foge de seu controle e não há solução criativa que compense a crueza da realidade. O disfarce imaginário caiu, revelando um rosto terrível que imobiliza Vicente e ameaça-o com a morte. Por outro lado, a realidade exposta afirma também que agora só será possível o encontro com o cavalo real. Não há mais espaço para uma imaginação infantil que controla tudo e a todos; o real faz-se no jogo entre sujeito e mundo.
O Cowboy, herói profissional, consciente dos perigos da realidade, entra em ação. Prende os bandidos e salva o menino. Vicente e o Cowboy têm em comum a paixão por cavalos; o vaqueiro doma os animais para vendê-los ao circo. Vicente não precisa domar seu cavalo; o objeto – cavalo – não está dissociado do sujeito – Vicente. Não é algo externo, que deve ser capturado, educado e humanizado. O cavalo azul faz parte de Vicente, ou melhor, Vicente faz parte de seu cavalo azul. Domar cavalos e prender bandidos são funções que se relacionam. A natureza traz consigo o excesso, de forma que poderá ser representada como um mal, à sombra da educação e das leis que formam sujeitos auto-disciplinados. Os instintos – entre eles, o impulso criativo – são sufocados pela cultura, restando-nos apenas cavalos brancos, iguais e normais.

O encontro
Finalmente, o encontro:
“Como vocês viram, os três músicos foram presos, a menina levei para casa dela. Todos na cidade estão esperando Vicente voltar. Ele continuou correndo o mundo. (Na cena surge Vicente todo esfarrapado, sem um pé de sapato, comendo um pedaço de pão) Quando estava muito cansando, vinha deitar aqui perto de mim (...) E foi assim que um dia... Vejam vocês...”.
O menino segue sozinho em sua busca; na Serra da Mantiqueira, quando ele menos espera, dá-se a aparição do cavalo azul. A autora indica o tom de naturalidade do encontro: “Como se estivesse fazendo a coisa mais natural do mundo, sem absolutamente encarar a aparição do seu cavalinho como coisa impossível, (...)".
Não existem surpresas na peça O Cavalinho Azul. Desde o início, a fé inabalável do menino denuncia o final da história – a inexorabilidade do encontro – sem com isso prejudicar a identificação do espectador com a peça. A transformação lenta e quase imperceptível pelo qual passa o herói ecoa no espectador, levando-o a ver o mundo com o olhar de Vicente. Porém, na aparição final do verdadeiro cavalo azul, isso já não é uma surpresa, mas sim uma certeza natural que o acompanhou desde o começo do espetáculo.
O ceticismo inicial do espectador converte-se em fé inabalável, seguindo o reflexo da transformação vivenciada por Vicente em sua jornada: realizar sua fé sob a forma de um corpo milagroso. Contudo, não há milagre – pelo menos não nos termos que utilizamos usualmente. A idéia de milagre pode ser associada à passividade, e isso se opõe radicalmente à postura de buscar o cavalo pelo mundo, em uma trajetória de esforço e paciência.
O retorno de Vicente e seu cavalo azul para casa marca uma trajetória espiralada. O final da linha – sob a influência de uma nova condição adquirida ao longo do processo – sobrepõe-se ao começo, determinando não o fechamento, mas a abertura de uma outra circunferência, que ao fim sobrepõe-se ao começo, abrindo uma nova circunferência, e assim por diante em um fluxo ininterrupto que é o mito de Vicente.

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