quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Afinidades, fontes e retalhos

entrevista com Andrea Beltrão



Vamos supor que você seja sócio do Flamengo, freqüente o clube na parte da manhã e vez por outra se posicione à beira da piscina olímpica, onde, desde muito cedo, nadadores deslizam freneticamente pelas cristalinas águas. Se você tem esse hábito, é certo que já tenha tido sua atenção voltada para uma moça esguia que, após cumprir exaustiva rotina aquática, abandona a piscina com infinita graça, sempre brindada com olhares curiosos. E se você teve a sensação de que a conhecia, essa é uma hipótese muito provável. Afinal, a nadadora em questão está sempre presente na TV, no cinema e no teatro. Trata-se de Andrea Beltrão, uma das maiores atrizes do país, e que agora você vai conhecer um pouco mais.
Em entrevista concedida a Daniel Schenker, Bernardo Jablonski e Lionel Fischer, publicada nos Cadernos de Teatro nº 169, a maravilhosa intérprete de A prova – seu último sucesso no teatro – fala de sua carreira, processo de trabalho e planos para o futuro, entre outros temas.

* * *

Cadernos de Teatro - Quando você começou a fazer teatro?

Andrea Beltrão - Participei de minha primeira peça ainda na escola, aos 12 anos. Foi O boi e o burro no caminho de Belém. Daí, eu fui fazer Tablado, onde tive, como professores, Aracy Mourthé, Damião e Thaís Baloni. Interpretei um sapo em João e Maria e estive também em Quem pariu Mateus Rimbali? e Hoje é dia de rock.

CT - Você nasceu no Rio de Janeiro? É filha única?

AB - Sou carioca. Fui filha única, deixei de ser e voltei a ser porque meu irmão faleceu.

CT - E que atividades você desenvolvia antes de se tornar atriz?

AB - Jogava vôlei, nadava. Queria ser atleta, ir para Moscou...

CT - Igual às Três irmãs...(peça de Tchecov em que três irmãs, que moram na província, sonham em ir para Moscou)

AB - Exatamente.

CT - E por que você interrompeu suas atividades esportivas?

AB - Na verdade, eu até hoje ainda nado.

CT - E quanto ao vôlei?

AB - O vôlei eu parei. Eu jogava no Flamengo e tive um problema no joelho. Aí fiquei meio vagabunda e a minha família acabou me botando no Tablado.

CT - Então não foi uma opção tua.

AB - Não foi mesmo. Fui a contragosto, porque era muito tímida.

CT - E como foi o teu início no Tablado?

AB - Eu me sentia meio deslocada. A maior parte da turma era do Andrews e eu ia de chinelo e calça rasgada. Me viam como uma garota estranha. Mas a Aracy foi me puxando e eu comecei a me interessar mesmo a partir de O auto da compadecida, em que fazia o João Grilo. Me lembro que você, Bernardo, e a Silvia Fucs foram falar comigo no final da peça, eu estava muito nervosa naquele dia. Contei para a minha mãe que os dois disseram que eu era ótima e me matriculei no ano seguinte. Mas não na turma do Bernardo, sempre lotada. (Neste momento, Bernardo Jablonski ficou rubro de modéstia)

CT - Quanto tempo você ficou no Tablado? E depois, foi para onde?

AB - Fiquei no Tablado durante uns quatro anos. Aí conheci o grupo Manhas e Manias, formado por José Lavigne, Carina Cooper, Marcio Trigo, Chico Diaz, Dora Pellegrino, Vicente Barcellos e Mario Dias Costa. Era um momento em que a Dora e o Vicente iam sair e estavam precisando de três garotas. Então, eu e Debora Bloch acabamos entrando no infantil Brincando com o fogo. Permaneci lá por uns cinco anos. Mas não posso esquecer também que houve um grupo paralelo ao Tablado, o Arco da Velha, em que eu e Fabrizia Pinto montávamos Flicts em lugares bem pobres. Bom, mas acabei saindo do Manhas porque eles foram fazer uma temporada em São Paulo e eu estava cursando a Faculdade de Teatro da Uni-Rio. Mas acabei trancando para fazer o filme Garota dourada, em Florianópolis.

CT - Quais os trabalhos que você considera mais importantes em sua carreira?

AB - Cada um teve a sua importância. Foi em O auto da compadecida que senti uma onda especial. Exercitei o teatro de rua com as peças do Arco da Velha e do Manhas e Manias. A tempestade foi o meu primeiro Shakespeare. E continuei procurando manter o espírito de grupo nos trabalhos seguintes. Em O amigo da onça éramos um grupo, apesar de não termos um nome.

CT - Você prefere trabalhar em grupo?

AB - Sempre, porque acho bacana ter uma família artística com afinidades, cada um com uma chance diferente a cada novo trabalho. O chato é que as peças terminam e as pessoas somem e você acaba ficando melancólico.

CT - Em grupo acontecem situações complicadas em termos de distribuição de papéis, uma obrigação em ser absolutamente democrático quando há pessoas que se destacam naturalmente...

AB - Estou lendo a nova biografia da Cacilda Becker e lá está escrito que, num determinado momento, ela é acusada de querer sempre fazer o papel principal, e ela responde que tem que ser assim porque ela é a melhor atriz. Acho que eu não faria isto; posso lutar pelo papel mas não no sentido do “eu sou a melhor”. Até porque há uma diferença fundamental: enquanto que no passado Cacilda parecia estar muito à frente das demais, na minha geração existem várias excelentes atrizes, como a Fernandinha Torres e a Débora Bloch.

CT - Você já tem algum projeto teatral agendado?

AB - Bem, o meu amigo e parceiro Daniel Dantas vai fazer Macbeth, algo que me interessa muito, mas estou envolvida com a A prova. Nós vamos fazer uma temporada em São Paulo.

CT - Retomando a cronologia da sua carreira. Estávamos em O amigo da onça.

AB - Tinha acabado Armação ilimitada e eu havia passado por um problema sério com drogas, tanto que fiquei durante cinco anos nos Narcóticos Anônimos.

CT - Como começou o seu contato com as drogas?

AB - Por uma curiosidade idiota de jovem, prepotência, ignorância em relação ao perigo e devido também às minhas confusões habituais. Vi que tinha que parar quando perdi o controle e percebi que as pessoas que se drogavam comigo estavam preocupadas. Fazia O amigo da onça e Sergio Mamberti convidou uma pessoa do NA que foi conversar comigo. Mas estava fazendo análise e achava que conseguiria parar. Não deu. Quando me dei conta de que poderia ser internada fui para o NA, mantendo também a análise.

CT - Depois você foi fazer A estrela do lar, não?

AB - Na época de A estrela...estava meio desesperada pela falta de trabalho, achava que podia estar estigmatizada. Marieta Severo soube que eu estava bem e me chamou. Li a peça, vi que o papel era pequeno, mas queria trabalhar e foi uma experiência ótima. Estive muito bem acompanhada e consegui aparecer numa medida confortável para mim. Houve a morte do meu irmão, que faleceu aos 19 anos de aneurisma cerebral. Aí embarquei na TV direto e abandonei um pouco o teatro. Quando voltei, fui produzir Senhorita Julia em São Paulo, com o José Mayer. Conseguimos fazer uma temporada de cinco meses, acho que muito devido ao fato de nós dois contarmos naquele momento com a visibilidade da TV. Mas a montagem não era boa. Mas enfim, estava exercitando meu primeiro papel dramático.

CT - E depois?

AB - Procurei Marieta e fomos assistir A ver estrelas, do João Falcão. Aí pensamos que gostaríamos de fazer um espetáculo daqueles, só que para adultos. Procuramos o João e ele escreveu A dona da história.

CT - E a Marieta foi indicada como melhor atriz e você como atriz coadjuvante. Por que, se ambas dividiam a cena?

AB - É, mas entendo perfeitamente. Nós produzimos o espetáculo, o que nos dava um peso igual, mas historicamente não. E ela me deu a oportunidade de estar ao lado dela, abriu o palco meio a meio em fotos, cartazes, entrevistas. Terminamos porque engravidei (Andréa é mãe de Francisco, de 7 anos, Rosa, de 5, e José, de 2).

CT - E quando surgiu a oportunidade de protagonizar?

AB - Só em A prova. Em A memória da água, Felipe Hirsch me convidou e eu achava que era um diretor procurando uma atriz talentosa com quem nunca tinha trabalhado. Quando o produtor me chamou para fazer A prova, eu ainda dei uma esnobada. Mas ele, que era o produtor, queria, e o Aderbal (Freire-Filho), diretor, também. Agora, eu queria deixar claro que até hoje não sou super convidada. Eu é que vou atrás do que me interessa. Até porque as pessoas tendem a ficar esperando pelo grande papel. E se eu tenho a fantasia de que uma peça vai acabar e ninguém vai me chamar, então é hora de fazer uma peça barata num teatro de bolso.

CT - Parece que a Marieta Severo precisou correr 70 empresas até conseguir patrocínio para A dona da história. Ou seja: a cada novo projeto a pessoa tem que estar preparada para praticamente recomeçar do zero...

AB - Eu estou preparada para fazer tudo de novo. Eu não tenho nenhuma ilusão em relação à temporada de A prova, em São Paulo. Sei que estamos indo mostrar um excelente trabalho. Mas sugeriram três meses e eu pedi que fossem dois. Não é que só goste de me apresentar para casa lotada, mas quando abrimos o pano e há menos de 180 pessoas na platéia eu fico agoniada pelo lado da produção.

CT - Fazer teatro realmente ficou muito caro?

AB - Caríssimo. Por exemplo: precisamos de um dinheiro enorme para investir em divulgação. O material gráfico tem que ser muito bom. Anúncio não sai por menos de
R$ 10 mil por mês. E acho que está muito difícil romper uma barreira com a imprensa. Temos sempre que ter um gancho. Hoje em dia nós estreamos um espetáculo e podemos perder uma matéria de capa para uma taça de vinho de Petrópolis. Na verdade, o mundo da informação está muito banalizado. Não interessa falar só do seu trabalho, você tem que parecer inteligente, espirituosa e bonita.

CT - Para que lado você sente que a sua carreira pendeu mais?

AB - Para o lado do humor, da comediante. Em teatro a experiência mais amarga foi em Senhorita Julia, mas acabou sendo maravilhoso porque aprendi muito.

CT - Quais são os seus pontos fracos e fortes como intérprete?

AB - Meu ponto fraco sou eu todinha, o conjunto da obra (risos). Agora, uma coisa boa em mim é o fato de conseguir ver o lado triste das personagens sem pieguice, a não ser que se trate de uma personagem piegas mesmo. Com já vivi muitas coisas tristes, perdi o medo da tristeza. Sei que num momento de tristeza total, algo acontece.

CT - A sua carreira passou por uma transformação evidente: do humor para o mergulho em atmosferas mais densas. Isso tem alguma coisa a ver com o mundo atual, que positivamente não anda nada engraçado?

AB - Não pensei nisto, as coisas foram acontecendo. Acho que no meu caso é uma questão de maturidade, de ter trabalhado muito, de ser boa aluna.

CT - Como é que você inicia um ensaio? Normalmente já sabe a direção que vai seguir ou é sempre um salto no escuro?

AB - É sempre um salto no escuro. Aliás, adoro abismos. Quando começo a trabalhar, fico estranha, tensa, não quero conversar, não quero que me desconcentrem. Fico ansiosa para ir para o ensaio, nervosa quando demora para começar, achando que não vai dar tempo. Fico preocupada se as pessoas estão sendo bem tratadas. Se uso o meu poder em algum momento, é aí. No decorrer do trabalho, meu objetivo é pegar um papel em branco e fazer um desenho novo, apesar de se tratar de mim, da mesma pessoa. Desconfio do que é muito natural para mim.

CT - Disseque um pouco mais seu processo de trabalho.

AB - Em A prova, por exemplo, fizemos umas duas semanas de leitura de mesa examinando a tradução de José Almino. O Aderbal já tinha na cabeça que este seria um trabalho essencial. Nada de pirotecnias e marcas engenhosas. Contamos a história, até porque o texto é muito rico e merece ser falado com calma. Sobre a personagem, Aderbal me disse: é um corpo largado numa mente brilhante. Assisti a Corra, Lola, corra e percebi que a música do filme me daria a velocidade cerebral de que precisava. Fui ver K-pax, que é péssimo, mas achava que o comportamento do personagem poderia me dar alguma coisa. Aderbal me falou para ler Humilhados e ofendidos, de Dostoievski, onde há uma menina de 12 anos, uma heroína muito triste. A criação, então, é uma colcha de retalhos e eu preciso de fontes.

CT - Quando você sentiu que o trabalho daria certo?

AB - Aderbal é famoso por falar muito e eu apressava – apesar dele só falar coisas maravilhosas. Aí eu comprei um caderno e comecei a escrever tudo o que ele falava, tentando, depois, aplicar no texto. Ensaiava com os dados que ele tinha me dado no dia anterior. Em determinado momento, eu disse: “Aderbal, você não está me falando nada sobre as minhas cenas”. E ele respondeu: “Você está apontando para vários lados. Eu gosto de todos, mas não sei por qual me decidir”.

CT - Qual o conselho que você daria para uma atriz iniciante?

AB - Para seguir sua verdadeira intenção, seu objetivo. Adoro fazer sucesso, mas não cedo a determinadas concessões, como a permanência na mídia, e não gosto de falar de nada que não seja o meu trabalho. E é esta postura que acaba gerando uma solidez, uma confiança. Adoro a chacrinha da TV, mas sei que meu lugar é no teatro. E, hoje em dia, se você não tem um apartamento, um carro e uma casa de campo aos 25 anos, significa que está atrasado. Esta cobrança não existia no passado e é ela que distancia o artista da razão principal que o levou àquilo: a possibilidade de mexer em buracos difíceis.

CT - O que você gostou mais de fazer na televisão e no cinema?

AB - Na televisão, Armação ilimitada, porque foi onde aprendi a fazer TV e cinema. Guel Arraes, com quem era casada na época, filmava com uma câmera só e eu acompanhava a edição dos programas e entendia tecnicamente. No cinema gostei de Pequeno dicionário amoroso e A partilha.

CT - O humor exige mais domínio técnico do que o drama?

AB - Tanto o drama quanto o humor possuem uma matemática de intervenção. No humor o ator conta com uma resposta mais imediata através das gargalhadas, ao passo que no drama a resposta é mais sutil. A comédia tem uma aparente facilidade que, na verdade, é uma grande dificuldade.

CT - Você se considera engraçada?

AB - Sim, mas tenho tara em observar as pessoas. Adoro pesquisar na rua, prestar atenção nos outros, ver manifestações emocionais e sociais e sublinhar isto, que vem da vida cotidiana.


Principais trabalhos

Teatro

A tempestade (William Shakespeare, direção de Paulo Reis)
O amigo da onça (Chico Caruso, direção de Paulo Betti)
A estrela do lar (Mauro Rasi, direção do autor)
A dona da história (João Falcão, direção do autor)
A memória da água (Shelagh Stephenson, direção de Felipe Hirsh)
A prova (David Auburn, direção de Aderbal Freire-Filho)

Cinema

Garganta (Rodolfo Brandão)
Minas Texas (Carlos Alberto Prates)
A cor do seu destino (Jorge Durán)
Vai trabalhar, vagabundo II (Hugo Carvana)
Pequeno dicionário amoroso (Sandra Werneck)
A partilha (Daniel Filho)

Televisão

Armação ilimitada (seriado mensal. Direção de Guel Arraes)
Corpo a corpo (novela de Gilberto Braga, direção de Dênis Carvalho)
Rainha da sucata (novela de Sílvio de Abreu, direção de Jorge Fernando)
Radical chic (programa semanal de Miguel Paiva, direção de Marcos Paulo)
Mulheres de areia (novela de Yvani Ribeiro, Direção de Wolf Maia)
Madona de cedro (novela de Antônio Callado, direção de Tisuka Yamasaki)

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