sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Camus, em o Mito de Sísifo:

“Um mundo que pode ser explicado pelo raciocínio, por mais falho que seja este, é um mundo familiar. Mas num universo repentinamente privado de ilusões e de luz, o homem se sente um estranho. Seu exílio é irremediável, porque foi privado da lembrança de uma pátria perdida tanto quanto da esperança de uma terra de promissão futura. Esse divórcio entre o homem e sua vida, entre o ator e o seu cenário, em verdade constitui o sentimento do Absurdo.”
Paixão mortal
Fred Mercury

Quando eu a conheci, tinha 16 anos. Ela, não sei quantos anos tinha.
Fomos apresentados numa festa, por um carinha que se dizia meu
amigo. Foi amor à primeira vista. Ela me enlouquecia. Nosso amor
chegou a um ponto que eu não conseguia mais viver sem ela. Mas
era proibido...meus pais não acreditaram. Fui repreendido na escola
e passamos a nos encontrar escondidos. Mas aí, não deu. Fiquei
louco. Eu queria, mas não a tinha. E eu não podia permitir que me
afastassem dela. Eu a amava!? Bati com o carro. Quebrei tudo
dentro de casa. E quase matei minha irmã. Eu estava louco.
Precisava dela...
Hoje, tenho 39 anos. Estou internado num hospital. Sou inútil. Vou
morrer. Abandonado pelos meus pais, meus amigos e por ela. Seu
nome: cocaína! Devo tudo a ela: meu amor, minha vida, minha
destruição e minha morte.
Teatro e Psicanálise
ou

No fundo de todo poço
existe sempre uma mola


* * *


Que Teatro e Psicanálise têm muito em comum, disso todos sabemos. Mas talvez sejam muitos os que não acreditam no subtítulo que escolhemos para o presente curso. No entanto, são justamente os que duvidam que mais nos interessam. Afinal, dentre as muitas definições que podemos conferir à vida, uma delas pode ser precisamente esta: “Viver é compartilhar dúvidas” – esta frase tomamos “emprestada” do autor e diretor Eduardo Wotzik, ainda que um pouco modificada (No original, “Viver é compartilhar a dúvida”).

A parceria que propomos, portanto, pressupõe a existência de questões – conhecidas ou a serem descobertas – que geram uma permanente sensação de desconforto ou inquietude, e assim contribuem para bloquear a materialização dos impulsos capazes de conferir plenitude ao ato de existir.

Mas cumpre registrar que este curso não se destina a atores, embora sua dinâmica tenha estreita relação com o teatro. E por não se destinar a atores, não trabalharemos a partir de exercícios pré-elaborados, já que estes serão criados em função das necessidades pessoais de cada aluno.

E também julgamos oportuno esclarecer que não se trata de psicodrama, pois não nos propomos a investigar ou solucionar conflitos a partir da dramatização dos mesmos. Nosso trabalho, como já deve ter ficado implícito, utilizará o caráter lúdico do teatro apenas como um elemento facilitador, um canal de busca, posto que no plano da fantasia é sempre mais fácil lidar com tudo aquilo que nos incomoda na realidade. Em última instância, serão os alunos que determinarão as aulas, norteando-as de acordo com suas premissas essenciais.

A seguir, detalhamos com maior precisão
como se dará a dinâmica do curso.

NÚMERO DE ENCONTROS – 8 (um por semana)

DURAÇÃO DE CADA ENCONTRO – 1h30.

DINÂMICA – A primeira hora será dedicada à expressão de emoções dirigida pelo professor de teatro e nos 30 minutos finais será discutido o que foi vivenciado por cada aluno à luz do olhar da psicanalista, do professor e do grupo.

OBJETIVO – o objetivo fundamental do curso é que, no final dos oito encontros, o aluno tenha entrado mais em contato com o seu ser no que ele tem de mais precioso e singular.

PREÇO – R$ 400,00

NÚMERO DE VAGAS – Limitado.

PROCESSO DE SELEÇÃO – Entrevista com os coordenadores.


Eis, em resumo, o que temos a oferecer, que esperamos que corresponda à confiança em nós depositada.

Atenciosamente,

Eliana Heilsinger
Lionel Fischer
CICLOS DE PALESTRAS NO TABLADO

Todos os encontros acontecerão no Teatro O Tablado (Av. Lineu de Paula Machado, 795 – Lagoa/ RJ, com capacidade de 150 lugares), às terças-feiras, a partir das 20h, durante o ano de 2009.

O TEATRO HOJE / 1º Bimestre (abril a maio)

1° MESA REDONDA COM HÉLIO EICHBAUER, AMIR HADDAD E FELIPE HIRSH
MEDIADOR: LIONEL FISCHER

2º ENTREVISTA COM FERNANDA MONTENEGRO
MEDIADORES: ANDREIA FERNANDES E RICARDO KOSOVSKI

3º CURSO PARA VERTICALIZAÇÃO DO TEMA (SEIS ENCONTROS )
3 ENCONTROS COM ADERBAL FREIRE FILHO
3 ENCONTROS COM PATRÍCIA SELONK


TEATRO ORIENTAL E OCIDENTAL – CONFLUÊNCIAS / 2° Bimestre (junho a julho)

1° MESA REDONDA COM DARCI KUSANO E ISABELA FERNANDES
MEDIADOR: ALCIONE ARAÚJO

2° ENTREVISTA COM DENILSON LOPES
MEDIADORES: CHANG E RICARDO KOSOVSKI

3º CURSO PARA VERTICALIZAÇÃO DO TEMA (SEIS ENCONTROS )
3 ENCONTROS COM ALCIONE ARAÚJO
3 ENCONTROS COM DARCI KUSANO

TEATRO E CIÊNCIAS HUMANAS (Palestras) / 2º Semestre ( Agosto a Novembro)

I) TEATRO E EDUCAÇÃO POR FLÁVIO LANZARINI
II) TEATRO E FILOSOFIA POR ROBERTO MACHADO
III) TEATRO E ARTES CÊNICAS POR TUNGA
IV) TEATRO E TERAPIA POR CHANG
V) TEATRO E RELIGIÃO POR JOAQUIM MONTEIRO E TÂNIA BRANDÃO
VI) TEATRO E POLÍTICA POR ADRIANA RATTES E AUGUSTO BOAL
VII) TEATRO E AÇÃO SOCIAL POR GRINGO CARDIA
VIII) TEATRO E MÚSICA POR TIM RESCALA
IX) TEATRO E LITERATURA POR MILLOR FERNANDES
X) TEATRO E POESIA POR ELISA LUCINDA
XI) TEATRO E CINEMA POR DOMINGOS OLIVEIRA E RICARDO KOSOVSKI
XII) TEATRO E DANÇA POR DEBORAH COLKER

* * *

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Novos rumos para o teatro político



ENTREVISTA/ LUIZ FERNANDO LOBO


Luiz Fernando Lobo está revendo em perspectiva a trajetória de sua companhia, a Cia. Ensaio Aberto, nesse aniversário de 15 anos de atividades, mas sem parar de trabalhar. Depois de apresentar, dentro da programação da última edição do festival riocenacontemporanea, a performance Estação Terminal, realizada por sua mulher, a atriz e produtora Tuca Moraes, o diretor está reestreando Havana Café no Teatro Café Pequeno. Conhecida pelo teor assumidamente contundente e político, a Cia. Ensaio Aberto parece começar, sutilmente, a investigar caminhos diversos, sem, com isso, se distanciar de suas propostas originais. Luiz Fernando ainda não sabe exatamente que caminho é esse. Só que ele é novo.

* * *

CADERNOS DE TEATRO - Como surgiu o projeto de Estação Terminal?

LUIZ FERNANDO LOBO - Fomos convidados para participar de um festival em Londres, ligado às artes plásticas, onde Tuca realizaria uma performance de no máximo 45 minutos. Determinei que faríamos algo ligado ao universo dos doentes terminais. Reli o texto de Cemitério dos vivos – o primeiro espetáculo da companhia, há 15 anos – e achei que seria interessante transportar aquele universo para fora do Brasil. Dirigi, então, o mesmo material original de forma muito diferente, a começar pelo fato de que o espetáculo anterior foi realizado com 20 atores no prédio da UFRJ.

CT - Um projeto como o de Estação Terminal distancia, de alguma maneira, a Cia. Ensaio Aberto de um foco mais diretamente político?

LFL – O texto é extremamente político, mas de uma outra maneira. Está ligado à “temática” da exclusão – sendo próximo, nesse sentido, de nossos outros trabalhos –, mas traz um dado novo, sobre o qual ainda não sei falar muito bem. É algo ligado à forma. Em todo caso, acho que esse trabalho é mais contundente sob o ponto de vista humano e toca mais profundamente em camadas que não investigávamos antes.

CT - Como está sendo olhar para a trajetória da companhia nesse aniversário de 15 anos?

LFL - A exposição que fizemos no Oi Futuro nos fez perceber como trabalhamos de modo intenso ao longo desse tempo. Forneceu-nos uma visão de perspectiva. Um andar era dedicado ao teatro-documental, ao entendimento de teatro como instrumento de avaliação da vida, dos homens, das transformações sociais. São os casos de montagens como Bósnia, Bósnia, O Interrogatório e Olga. Além disso, constatamos, mais uma vez, a omissão de políticas públicas para atender o segmento de grupos e companhias. É quase como se as leis de incentivo tivessem sido idealizadas para produzir espetáculos descartáveis, ao passo que o trabalho em companhia se dá ao longo do tempo.

CT - Você considera que as companhias de teatro brasileiras vêm se integrando nos últimos tempos ou mantendo-se afastadas, cada qual desenvolvendo o seu trabalho específico?

LFL - Quando completamos dez anos de atividade, era comum a imprensa especializada do Rio de Janeiro dizer que não existiam companhias na cidade. Nos últimos anos, porém, a produção delas tornou-se evidente. Temos contado com iniciativas importantes, como a do Movimento Redemoinho, relativo a grupos e companhias do Brasil inteiro. A minha impressão é a de que antes as companhias se comunicavam mal e pouco. Esta situação mudou bastante. Surgiu a possibilidade de nos juntarmos e cobrarmos políticas públicas. Hoje é impossível falar a sério de teatro no Brasil sem levar em conta o trabalho das companhias.

CT - De quais companhias você se sente mais próximo, sob o ponto de vista artístico?

LFL - Da Cia. do Latão, do Folias D’Arte (ambas de São Paulo), do Olodum (da Bahia). São grupos que produzem trabalhos que pertencem a uma mesma tribo, mesmo com todas as diferenças.

CT - E no exterior?

LFL - Hoje em dia essas referências já não são tão fortes. Mas posso citar o Théâtre du Soleil e os trabalhos de Giorgio Strehler, Mathias Langoff e Yuri Liubimov.

CT - Você gosta de trabalhar com não-atores, como em Companheiros?

LFL - Em Companheiros misturei atores com atores bissextos. Estava interessado num outro tipo de ator – e, por isso, durante muitos anos evitei atores de mercado. Às vezes, buscava no mercado uma atriz que considerasse capaz de entender uma determinada personagem, como foi o caso de Thelma Reston, em A Mãe. Não tenho problema com atores de mercado; mas o mercado se organiza de forma contraditória ao funcionamento da companhia. Do mesmo modo, nosso sistema de trabalho, caracterizado por uma necessidade de estar no mundo respondendo na hora aos acontecimentos, é oposto ao do sistema de patrocínio, que exige que se apresente um projeto com uma dada antecedência. Seja como for, nos últimos anos passamos a lidar com esse conflito.

CT - Sua perspectiva em relação aos atores mudou ao longo do tempo?

LFL - Estamos ficando mais velhos. Durante muito tempo trabalhamos com atores bastante jovens, que, algumas vezes, não tinham maturidade pessoal e artística e vinham parar na companhia por falta de opção. Hoje lidamos com pessoas que buscam a companhia pelo que ela é. A relação artística e profissional se modifica. Mas continuo buscando um ator capaz de expressar sua opinião.

CT - Fale um pouco sobre a sua trajetória antes da fundação da Cia. Ensaio Aberto.

LFL - Sergio Britto me convidou, logo após a inauguração do Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio, para dirigir uma montagem de Tambores da Noite. Contei com condições ideais de produção. Era jovem, gostava da peça, do elenco, do resultado, mas, ao mesmo tempo, considerava aquém daquilo que buscava. Percebi que queria trabalhar com um ator mais comprometido. Percebi que meu caminho seria o do teatro de grupo. Hoje sabemos que os anos 90 foram ricos para o teatro de grupo. Trata-se de algo ligado ao processo de redemocratização do país.

CT - Qual é a busca da companhia, nesse momento?

LFL - Temos a certeza de que o passo mais importante é o de conquistar um espaço próprio. Foram muito bons os períodos em que ocupamos os teatros da Aliança Francesa (entre 1995 e 97) e o Glauce Rocha (entre 98 e 2000). Durante a fase da Aliança, consolidamos uma forma de produção e o nosso trabalho diferenciado com o público. O palco daquele teatro nunca foi pequeno para nós, mas o espaço passou a não ser suficiente para abrigar a platéia. No Glauce Rocha, o trabalho da companhia se desenvolveu de forma brutal. Mantivemos contato com grupos de todo o Brasil, albergamos muita gente. E começamos nossa carreira internacional. Fomos convidados a nos retirar do teatro por motivos políticos. Diziam que tinham outros projetos para o teatro, o que era mentira. Tanto que ficou fechado durante seis meses.
___________________________________
Esta entrevista, publicada nos Cadernos de Teatro nº 178, foi realizada por Daniel Schenker em outubro de 2007

_______________________________
Enfrentando abismos

Entrevista com
Daniel Dantas

Houve um tempo, nem tão remoto assim, que a maior angústia
de um intérprete era ver-se impossibilitado de passar o Natal
e o reveillon em Nova Iorque. Hoje, a angústia é outra: não
posar para a revista Caras, seja em sua paradisíaca ilha ou no
soberbo castelo que possui na Europa - como se isso pudesse
significar prova inconteste de prestígio...
Pois bem: Daniel Dantas nunca nutriu qualquer obsessão de
contemplar Papai Noel na citada metrópole e muito menos
ilustrou as páginas da badalada publicação - ao menos nos
referidos santuários. E no entanto, trata-se de um dos melhores
atores de sua geração, com marcantes atuações no teatro, no
cinema e na televisão.
Nesta entrevista aos Cadernos de Teatro, o ator (47 anos de idade,
25 de profissão, flamengo doente e incansável organizador de
peladas, nas quais exerce com competência a função de lateral direito) aborda, entre outros temas, sua trajetória artística, sua primeira direção e um instigante projeto de montagem de Macbeth, de Shapespeare, com apenas cinco atores!

* * *

Cadernos de Teatro - Você é filho de um ator (Nelson Dantas), tem uma irmã que é atriz (Andréa Dantas) e sua falecida mãe (Ismênia) chegou a escrever alguns textos teatrais. Desde pequeno você já intuia que seguiria essa profissão?

Daniel Dantas - Não. Na verdade, ainda muito jovem, eu comecei a fazer teatro mais para me libertar de uma certa timidez. E também porque no Bennett, onde eu estudava, tinha umas meninas muito bonitinhas...

CT - Era a Lúcia Coelho quem dava aulas de teatro lá?

DD - Isso. Ela fundou o Teatro Amador Bennettense (TAB) e durante três anos eu participei de várias montagens. Foi lá que conheci pessoas que viriam a se profissionalizar mais tarde, como o ator Fábio Junqueira e a cenógrafa Cica Modesto.

CT - Mas por que você não estudou no Tablado, como quase todos da sua geração?

DD - Eu fui muito ao Tablado quando era criança e ali assisti a inúmeros espetáculos. Mas as circustâncias me levaram ao TAB e quando deixei o grupo resolvi dar um tempo, para ver se era isso mesmo que eu queria para a minha vida. Foi quando conheci o Hamilton, que tinha sido aluno da Maria Clara e estava pensando em criar um grupo, que acabou se tornando da maior importância para o teatro brasileiro.

CT - Você está falando do Hamilton Vaz Pereira e do Asdrúbal Trouxe o Trombone, pelo qual passaram nomes como Regina Casé, Luiz Fernando Guimarães, Gilda Guilhon, Evandro Mesquita, Perfeito Fortuna etc. Você protagonizou dois dos mais significativos trabalhos do grupo: o de estréia (O inspetor geral, de Gogol) e Ubu Rei, de Alfred Jarry. Como foi esse período na sua carreira?

DD - Foi incrível. Entre outras coisas, o Hamilton e a Regina conseguiam pensar o teatro como um todo, ao contrário do que acontecia comigo. Além disso, eles ambicionavam criar uma nova linguagem teatral, em total oposição à maneira tradicional de se fazer teatro.

CT - E como era o processo de criação?

DD - Era muito criativo...(risos) Na realidade, o grande barato do Hamilton era que ele te dava estímulos maravilhosos e depois conseguia selecionar o que de melhor você oferecia. E o texto era uma espécie de pretexto para as improvisações. Afora o fato de que tudo era sempre muito discutido.

CT - Fica então evidente que esse seu primeiro contato com o Hamilton foi muito estimulante. Mas depois veio o Ubu. Neste segundo espetáculo, você notou alguma diferença significativa na sua maneira de atuar ou de se envolver com o processo?

DD - Sem dúvida. No Inspetor, foi como se eu estivesse pisando pela primeira vez num continente desconhecido. Já na montagem seguinte, a minha compreensão daquela forma de fazer teatro era muito maior. E então eu comecei a entender e aproveitar muito mais as minhas qualidades que poderiam servir à montagem, me conscientizei como ator.

CT - Pouco depois, você se ligou ao Pessoal do Despertar, grupo dirigido por Paulo Reis e do qual também faziam parte jovens que brilhariam na profissão, como Maria Padilha, Zezé Polessa - com quem você foi casado -, Miguel Falabella, Antonio De Bonis e Henri Pagnoncelli, entre outros. Quais os espetáculos que você fez com esse grupo?

DD - Fiz o de estréia, O despertar da primavera, e depois A tempestade e O círculo de giz caucasiano.

CT - E o processo de criação era semelhante ao do Asdrúbal?

DD - Não. O Paulo tinha como uma de suas maiores prioridades não adulterar o texto. Ou seja: ele sustentava que o resultado final, por mais criativo que fosse - e normalmente era - tinha que manter total fidelidade aos conteúdos propostos pelo autor.

CT - Depois de tantos anos trabalhando em grupo, você iniciou uma trajetória “normal” de ator, ou seja, a de alguém que vive efetivamente de sua profissão, e que portanto nem sempre pode se dar ao luxo de selecionar o projeto em que irá se envolver. O que é que mudou nessa nova realidade?

DD - Tudo. No chamado teatro profissional, a tua margem de criação é menor - até por uma questão de tempo, já que tanto no Asdrúbal como no Despertar a gente ensaiava muitos meses, o que é inviável numa produção comercial. É também muito mais reduzido o teu controle sobre o produto final. Por outro lado, há um ganho: como você é chamado para se integrar num contexto claramente definido, isso eleva o teu grau de concentração, pois o que importa é que você seja um executante preciso daquilo que se espera de você.

CT - É mais ou menos o que ocorre no cinema e na televisão?

DD - É. Só que nesses dois veículos o teu controle sobre o produto final é ainda muito menor.

CT - Na TV, você já fez dezenas de trabalhos - novelas, especiais, miniséries etc. Destacaria algum?

DD - Pode ser dois? (Risos)

CT - Ou três, ou...

DD - Não, vamos ficar só com dois: no seriado Malu mulher, eu adorei minha participação em Uma coisa que não deu certo. E também fiquei muito feliz com o que consegui na novela O dono do mundo.

CT - E no cinema?

DD - Pequeno dicionário amoroso.

CT - Com 25 anos de carreira e atuando em tantas frentes, você já deve ter uma opinião sobre suas qualidades e defeitos como ator. Vamos às qualidades?

DD - Dentre as infinitas que possuo e que minha modéstia impede de citar a todas...(muitos risos)...Não, falando sério: acho que meu maior mérito como ator é minha capacidade de compreender o texto literariamente e conseguir imaginá-lo no espaço. E depois - não sempre, necessariamente - conseguir dizê-lo como deve ser dito, para que o espectador não fique com a menor dúvida sobre as idéias e sentimentos que meu personagem deseja transmitir.

CT - E quanto aos defeitos?

DD (Após longa pausa) - Não fica achando que eu estou demorando pra responder porque não percebo nenhuma falha em mim. (Risos) Estou apenas tentando selecionar a que mais me incomoda. (Nova e prolongada pausa) É o seguinte: gostaria de ter mais facilidade vocal. Mas sobretudo enfrentar com mais coragem os abismos emocionais de determinados personagens, ao invés de tentar driblá-los, como já fiz muitas vezes.

CT - Agora vamos ao seu primeiro trabalho de direção. Normalmente, um estreante na função procura se cercar de algumas garantias, como um texto conhecido e de inegável qualidade. No entanto, você optou por um poeta (o catalão Juan Brossa) que, mais do que escrever peças, propõe poemas visuais, como o que você encenou há um ano, Strep-tease. Por quê?

DD - Na verdade, esse projeto era muito mais da minha mulher (a atriz e bailarina Cristina Amadeo) e da Carol Aguiar. Eu fui entrando de mansinho, assistindo a alguns ensaios, dando sugestões e quando dei por mim, estava dirigindo. E fiquei fascinado, não apenas por dirigir pela primeira vez, mas sobretudo porque o Brossa lida com um universo muito instigante, em que há sempre uma estranheza na relação entre os objetos, uma permanente inquietação no que se refere à linguagem e aos significados.

CT - E você gostou do resultado?

DD - Sim. Sobretudo porque eu acho que consegui ser fiel ao autor sem ser subserviente. E visualmente, o espetáculo era muito bonito.

CT - E o projeto Macbeth?

DD - Ele nasceu com o Cláudio Torres Gonzaga, que defendeu há uns seis anos, na Uni-Rio, uma tese de mestrado chamada Uma charada para Macbeth. Afora a tese em si, ele criou uma versão surpreendente de Macbeth com apenas três atores!? E agora nós estamos pensando em fazer com cinco.

CT - Você fará o protagonista?

DD - Sim. E os outros quatro atores vão se revesar nos demais papéis.

CT - O elenco já está formado?

DD - Não sei se o definitivo, mas eu, a Cris (Cristina Amadeo), o Isaac Bernat, o Antonio Gonzales e a Dora Pellegrino - além do Cláudio, naturalmente - estamos nos encontrando toda segunda-feira lá em casa para ler e discutir a peça. Além de pensar na inevitável captação de recursos e num espaço disponível.

CT - É sabido que o papel de Macbeth dificilmente é bem realizado, até mesmo por atores consagrados. Algum receio especial?

DD - Todos e mais alguns. Mas desta vez eu estou disposto a peitar todos os abismos que surgirem.
_________________________________
Esta entrevista, publicada nos Cadernos de Teatro nº 167, foi concedida a Lionel Fischer em março de 2002.

_____________________________
Pelo caminho do sol


Jefferson Miranda: ENTREVISTA



Não foi por acaso que Jefferson Miranda chamou de Autônomo a sua companhia de teatro. De fato, o diretor vem, ao longo dos anos, desenvolvendo um trabalho bastante particularizado na cena carioca – seja na “fase” dos anos 90, quando buscava inspiração no próprio teatro, seja mais recentemente, quando passou a buscar um registro interpretativo diverso para os atores, calcado num natural construído. Um dos desafios propostos pelas montagens de Jefferson ao espectador está em procurar perceber como o elenco apresenta um refinado trabalho de construção em propostas que tensionam o conceito tradicional de personagem. O diretor também vem inserindo os espectadores dentro da cena, mas de formas diversas nas últimas encenações. Em entrevista concedida os Cadernos de Teatro, Jeferson fala sobre a trajetória da Companhia Autônomo, desde o início, no final da década de 80, até os dias de hoje, além da parceria com o dramaturg e cenógrafo Flavio Graff (ver box).

* * *

CADERNOS DE TEATRO – Como surgiu a Companhia Teatro Autônomo?

Jefferson Miranda – No meio de Sísifo, trabalho que fizemos em 1989. Pensávamos mais em processo do que em espetáculo. O nome Autônomo refere-se ao teatro independente, à possibilidade da cena autônoma. Não dá para falar sobre a cena a partir dos códigos anteriores, porque novas regras estão sendo instauradas. O trabalho deve ser apreendido com essa disponibilidade, mas ainda ficamos presos a códigos muito endurecidos ou fáceis. Às vezes, é difícil fugir do fácil. É preciso ampliar o campo de visão, de apreensão do mundo. Não que a arte vá te modificar, mas ela te disponibiliza para a mudança.

CT – Atualmente, a cena autônoma da companhia é a mesma da de anos passados?

JM – Não. Antes predominava uma criação a partir do teatro. Nutríamo-nos do teatro para fazer teatro. Era uma criação-meta. O nosso caminho foi este diante daquela tendência negativa de desprezo e descrença na humanidade que vigorou na passagem dos anos 80 para os 90. Tratamos isto com certa ironia, olhando para nossas desqualificações humanas de forma bem humorada. Este pensamento deu origem a espetáculos como Minh’alma é imortal, 7x2 = y e A noite de todas as ceias. Já havia um pensamento crítico, a idéia do paraíso perdido, mas também uma crença na possibilidade de mudança. Tentamos ir pelo caminho do sol.

CT – Em determinado momento houve uma interrupção nos trabalhos da companhia. Fale um pouco sobre este hiato.

JM – Não foi planejado. A noite de todas as ceias foi muito bem acolhida. Quase virou um caminho para um teatro de mercado, algo que nunca foi o meu propósito. Havia diferença de pensamento entre as pessoas que estavam na companhia naquele momento. A média de idade era de 30 anos, um período meio crítico, em que as pessoas param para pensar sobre o que está acontecendo com elas. Se eu tive a ilusão de que seria bem acolhido porque estava trabalhando com afinco, isto caiu por terra no segundo espetáculo. Quero o diálogo e não ser incensado. Eu tive esta clareza, mas a companhia como um todo, não. Foi um tempo de verificar se para onde estava me dirigindo tinha valor única e exclusivamente para mim. Achei que valeria a pena persistir. Aí começamos a nos reorganizar. Se antes nos inspirávamos em teatro para fazer teatro, agora achava que o teatro estava muito teatral. Precisava descobrir para qual lugar queria seguir. Ficamos um período sem referências. De repente, falei: “Sem personagem, sem situação, sem enredo, sem embate, sem grandes conflitos”. Dizia para o ator entrar em cena e lidar com uma carta que tinha acabado de receber, um telefone que toca. A proposta era limpar tudo e voltar para o zero. A nossa referência para fazer teatro passou a ser a vida.

CT – Vocês retornaram com o estudo cênico Uma coisa que não tem nome...e que se perdeu. Depois, o primeiro espetáculo desta nova fase foi Um bando chamado desejo. Como foi abordar a temática do desejo?

JM – É uma montagem que aconteceu meio fora do nosso tempo. Trata-se de um projeto antigo, que já estava em fase de preparo quando interrompemos os trabalhos em 1998. Quando retornamos, decidimos não fazer mais como em 98. Gosto muito do trabalho. Demos um salto. Mas não sei se deveríamos ter esperado mais. Era um tema muito forte, abordado de uma forma também muito forte, que girava em torno de situações extraordinárias. Um projeto arrojado. Sofremos bastante – e juntos. As pessoas bombardeavam e nós conseguíamos nos manter íntegros.

CT – Como se deu a parceria com Flavio Graff?

JM – Aconteceu de forma engraçada. Em 1996, li uma matéria escrita por ele sobre Minh’alma é imortal, quando nós apresentamos o espetáculo no Festival RiocenaContemporânea. Ele falou sobre o nosso trabalho com muita propriedade. No final do ano, fizemos A noite de todas as ceias e ele escreveu a crítica. Percebi que havia entendido não só o resultado como o processo. Já tinha tentado convidar alguém para abordar criticamente o processo da companhia, alguém que soubesse do nosso ponto de partida, objetivos e pudesse realizar avaliações em perspectiva ensaística. Em 2000, numa reunião com amigos, Flavio e eu nos apresentamos e fiz o convite. Mas a idéia ainda não se realizou naquele momento. Em 2002, quando mostramos Uma coisa que não tem nome...e que se perdeu lancei um convite mais formal. Ele, então, entrou na companhia e também passou a dividir comigo a criação da parte plástica dos espetáculos.

CT – Em relação ao trabalho do ator, fale um pouco sobre a busca por uma atuação transparente, por um natural construído.

JM – A atuação transparente tem a aparência de não-construção, mas é pura construção. Só que o trabalho de construção do ator não fica à mostra. A cena é propositadamente suja, no sentido de que os espectadores não têm a oportunidade de ver e ouvir tudo da mesma forma, algo que, aliás, não acontece na vida. Então, como se dá essa diferença de apreensão da realidade?

CT – A impotência é um tema importante e recorrente nos trabalhos da companhia?

JM – Está em pauta. Já participa do nosso pensamento espacial, que não promove a totalidade. Ele sempre traduz a nossa impotência. Nós sabemos que é impossível estar em todos os lugares. Também é impossível ver tudo. A impotência é absolutamente participativa na nossa vida.

CT – Fale um pouco sobre o processo de inclusão do espectador dentro da cena. É algo que tem se dado de formas diferentes nos seus últimos trabalhos.

JM – Em Deve haver algum sentido em mim que basta não havia dinâmica na proposta de posicionamento do espectador, diferentemente do que acontecia em E agora nada mais é uma coisa só. Em ambos, existiam brechas nas quais o público era quase convidado a participar da cena (por exemplo, quando os atores ofereciam brigadeiros no primeiro e toda a proposta performática do segundo). Agora, em O perfeito cozinheiro das almas deste mundo, juntamos as duas propostas, mas de uma forma estática. Ou não exatamente. Estar ou não no meio da cena não faz grande diferença para nós. Seja como for, a presença do espectador é sempre considerada. Busco um espectador-criador, que participa subjetivamente e de forma criativa do processo. Não impomos uma história, mas procuramos despertar a história em quem nos assiste.

CT E agora nada mais é uma coisa só traz elementos de uma instalação? E caso traga, você pretende desenvolver esta vertente no seu trabalho?

JM – Acho que sim. Mas se refizéssemos hoje já seria diferente. Não queria que aquele trabalho fosse uma pura zona de contato entre o teatro e as artes plásticas, mas me apropriar do conceito de instalação em prol do teatro: como podemos trazer as qualidades da instalação dentro de uma pulsação teatral, cênica, e não de uma conformação puramente performática; como podemos criar narrativa e não só situação. Não gosto do interativo pueril, mas de mobilizar o espectador para uma experiência mais ampla. Procuro abrir, desmontar, desatar nós no teatro: o nó da narrativa, o nó da personagem, o nó do ego. Ao ator era colocada a seguinte questão: a sua cena pode não ser vista por ninguém. E aí, como é que fica? Esse era o maior objetivo no espetáculo.

CT – Há uma influência de Tchecov em O perfeito cozinheiro das almas deste mundo?

JM – Particularmente, não. Mas, aproveitando a referência de Oswald de Andrade, procuramos nos apropriar de muitos elementos. A cerejeira do cenário visa ao contraste entre dentro e fora. É o elemento de fora que está dentro de uma determinada estrutura. E há a questão da temporalidade. Trata-se de uma árvore que precisa de tempo para existir e florir. E expressamos também nas camadas de tinta das paredes do cenário. Existe ainda um outro ponto em relação ao tempo pouco abordado pelas pessoas: nos nossos espetáculos, procuramos encolher o tempo de reação do ator. Abordamos nos ensaios o percurso psíquico entre não querer falar e falar. Normalmente há saltos entre o antes e o depois. É o que caracteriza as propostas naturalistas. Já nós procuramos reproduzir o tempo psíquico de cada reação. Quero mostrar o processo, tornando o espectador participante dele, e não o resultado.

CT – Este tempo da reação costuma ser considerado como esgarçado, não?

JM – Costuma. Mas não sei se é esgarçado. É o tempo necessário, onde entra a subjetividade do espectador. Penso o teatro como uma arte que permite a participação subjetiva do espectador.

CT – A divisão da narrativa em três planos temporais está conectada ao ponto essencial que você aborda em O perfeito cozinheiro... ou faz parte de uma pesquisa sua que transcende este espetáculo?

JM – Nós passamos por escolhas independentes do nosso tempo e do comportamento nesse tempo. Impasses ocorrerão em nossas vidas. E as pessoas sofrem na hora da dor de uma escolha porque algo será perdido – mesmo sendo as mais descoladas, as que menos (aparentemente) se importam. E ainda no nosso futuro existirá em algum lugar algo que dói.

CTO perfeito cozinheiro...está filiado às principais propostas da Cia. de Teatro Autônomo?

JM – Este não é um projeto de risco como os da companhia, onde nos propomos a peitar a proposta até o fim ou até o limite, até onde puder fazer sentido. Em O perfeito cozinheiro... não haveria nenhum elemento com o qual não tivesse trabalhado antes. Utilizei-me com propriedade dos que tenho, até porque as últimas montagens da companhia me nutriram com uma série de ingredientes. Mas isto não significa que tenha me limitado a colocar aquela forma nessa massa. Só não tinha o desapego total – ou quase total – que tenho quando começo um trabalho da companhia e tento colocar tudo o que sei de lado. Mas há algo provocador no confronto com o espectador. Penso onde este trabalho me abre uma outra pergunta. Por outro lado, é perigoso se começamos a aderir a todos os feedbacks que nos chegam. Tudo o que ouvi sobre a questão do tempo não é maior do que o que me levou àquela proposta.

CT – Você tem um próximo projeto em vista com a companhia?

JM – Existe algo de muito cruel: o impedimento de se ter um pensamento de companhia. Celina Sodré também padece do problema de não ter uma companhia bancada. Não contamos com subsídio, com algo que possibilite à companhia existir independentemente da realização de espetáculos. Realizamos cinco projetos em quatro anos. Chega uma hora em que esta assiduidade torna-se complicada porque não temos um pensamento e um funcionamento industrial. Resolvemos, então, fazer uma pausa. Tenho vontade de realizar algo de pequeno porte – mas digo isto e quando percebo estou envolvido com algo dotado de uma complexidade fenomenal. Mas, seja como for, estará relacionado ao nosso tempo de agora.

CT – Como está sendo a experiência de trabalhar com alunos formados da Casa das Artes de Laranjeiras (CAL)?

JM – Digo o seguinte para os alunos: “Diretores e espetáculos, vocês terão muitos”. Na primeira montagem de formatura que dirigi, os alunos queriam passar pela mesma experiência que os atores da companhia. Não foi fácil – eram 25 atores e não cinco. Acho que é uma opção mais interessante porque do espetáculo propriamente dito eles esquecerão. Agora vou montar um texto do Tchecov bem próximo de Tio Vânia, mas um pouco mais juvenil, com um certo espírito de vaudeville.

* * *


E o crítico virou parceiro

Formado em jornalismo e com experiência acumulada, ao longo dos anos, como cenógrafo, ao lado de Ronald Monteiro, com quem trabalhou em diversos espetáculos, como Dona Rosita, a solteira, Entre o céu e o inferno e A flauta mágica, Flavio Graff passou a trabalhar na Companhia Teatro Autônomo depois de ter impressionado Jefferson Miranda com a precisão de suas observações sobre os espetáculos Minh’alma é imortal e A noite de todas as ceias. A parceria iniciou na retomada da atividade da Cia. com o estudo cênico Uma coisa que não tem nome... e que se perdeu, desenvolvido, por sua vez, no espetáculo Um bando chamado desejo.
A função de Flavio dentro do grupo é a de dramaturg, ou seja, de um crítico interno que avalia com o diretor o processo de construção de um determinado trabalho. Aos poucos, porém, Flavio assumiu mais uma função: a de diretor de arte, passando a cuidar da arrojada concepção cenográfica das montagens do grupo – Deve haver algum sentido em mim que basta, E agora nada mais é uma coisa só e O perfeito cozinheiro das almas deste mundo.

“Quando fui convidado para integrar a companhia, comecei a pensar com Jefferson sobre o que estávamos falando em cada espetáculo e a me deter na relação entre o espaço cênico e o espectador”, diz Flavio.
____________________________
Esta entrevista, publicada nos Cadernos de Teatro nº 176, foi feita por Daniel Schenker Wajnberg, cabendo a Lionel Fischer a redação final.
A casa da infância

ENTREVISTA com Cacá Mourthé


Até onde sua memória alcança, Cacá Mourthé vive no Tablado. A escola criada pela tia, Maria Clara Machado, sempre foi uma extensão da sua casa. Após estudar com sua mãe, Aracy Mourthé, Maria Clara, Louise Cardoso e Damião, Cacá começou a trabalhar como atriz, logo assumindo as funções de diretora e professora, mantendo ambas até hoje. Com a morte de Maria Clara, há cinco anos, Cacá assumiu a direção artística do Tablado. Aos 47 anos e caminhando para o terceiro casamento, ela acompanha o desenvolvimento profissional do filho, Pedro Kosovski, e não mede esforços para manter sempre abertas as portas Tablado.

* * *
Cadernos de Teatro – Como nasceu o Tablado?

Cacá Mourthé – O Tablado nasceu a partir da vontade da Clara de fundar um grupo quando chegou de Paris, muito entusiasmada. Ela se reuniu com amigos e fundaram o Tablado, em 1951, na casa do meu avô, em Ipanema.

CT – Você lembra quando esteve pela primeira vez no Tablado?

CM – Não, porque venho aqui desde muito pequenininha. É como a nossa casa, a casa da infância. É muito difícil registrar a primeira lembrança. E no Tablado funciona também o Patronato da Gávea, e, até hoje, uma escola de artes plásticas. Então, eu vinha para a escola com quatro, cinco anos. E também para assistir a missa na Igreja do Patronato, com a Clara.

CT – Como se deu a sua primeira relação com o Tablado como aluna?

CM – Eu tive aula com a minha mãe, Aracy, durante muitos anos, e depois passei para a Clara.

CT – De uma mãe para a outra...

CM – É.

CT – Você teve outro professor no Tablado?

CM – Também fui aluna da Louise Cardoso e do Carlos Wilson (Damião).

CT – Você lembra quando nasceu o desejo de ser atriz? Foi logo que você entrou? Você falou: é isso que eu quero para a minha vida?

CM – Eu adorava teatro quando era pequena, queria ser atriz. E eu tinha uma adoração enorme pela Clara, que morava conosco em Ipanema, na mesma casa. Então, eu era muito pequenininha, devia ter uns três ou quatro anos, e lembro que a Clara chegou para mim e perguntou: “Cacá, o que você vai querer ser quando crescer?” Sabe essas perguntas que a gente faz para as criancinhas? E eu olhei para ela e pensei: queria ser que nem ela. Mas como eu idolatrava a Clara, não tive coragem de dizer que também queria fazer teatro. Então, disse: “Quero ser madame”. Aí ela morreu de rir: “Você quer ser madame? Quer andar com cachorrinho na rua?” Eu disse que sim. Mas falei escondido, porque a minha vontade oculta era fazer teatro. Só que, na minha cabeça, eu não podia fazer teatro, já que ela, tão importante para mim, fazia.

CT – Em algum momento você teve inclinação por outra profissão?

CM – Fui vender seguros numa empresa que ficava no Centro da Cidade.

CT – Seguro de quê?

CM – De vida. Aí entrei lá naqueles prédios enormes, para aprender a vender seguros e não deu certo. Não deu certo mesmo...(risos)

CT – Desde o início, a Maria Clara se identificou com a escrita para criança?

CM – Sim, porque as primeiras peças foram escritas para os “netos”. Ela escreveu O Boi e o Burro no caminho de Belém, O rapto das cebolinhas e A bruxinha que era boa. Só textos infantis. Mais tarde, acho que na década de 70, ela começou a fazer peças para adultos. Aí escreveu As Interferências, Os embrulhos e mais algumas peças. Não lembro. Mas editadas acho que só foram estas duas.

CT – E ela trabalhou como atriz?

CM – Fora do Tablado ela atuou em Ensina-me a viver, no papel de Maude, numa dobradinha com a Madame Morineau.

CT – E aqui no Tablado?

CM – No Tablado ela fez muita coisa. Sobretudo no início, na década de 50. Porque o Tablado era uma escola de vanguarda, ao contrário do que muita gente pensa. Aqui se fazia teatro para adulto e com o maior sucesso. Por exemplo: Nossa cidade, de Thorton Wilder, nunca havia sido montada no Brasil. Ninguém conhecia aquele texto tão moderno. E a resposta do público foi maravilhosa, assim como da crítica.

CT – A Maria Clara era boa atriz?

CM – Não, eu não achava ela boa atriz. Quando ela foi fazer Ensina-me a viver eu quase morri de nervoso. Ela foi muito cara-de-pau ao aceitar o papel tendo apenas três dias para ensaiar. E aí ela não conseguia decorar nada, fez todo mundo ficar em pânico aqui no Tablado.

CT – Nathalia Timberg fazia a mãe e Diogo Vilela, o menino. E Maria Clara se revezava com Morineau...

CM – Isso. Elas se revezavam porque a Morineau ficou doente e não pode mais fazer todas as sessões. E a Clara, tadinha, esquecia demais o texto. Acho que foram os maiores brancos que já vi na vida. Eu suava, ela não conseguia falar e a platéia toda parada, o teatro parado. Nessas horas, o ator pára de respirar, acho que o oxigênio resseca, fica tudo duro, tenso. É horrível. Acho que a Clara era péssima atriz. Mas era o máximo quando subia no palco, naqueles repentes que tinha, para ensinar o ator como devia representar seu papel.

CT – Por quê?

CC – Porque conhecia o texto e o ator profundamente. Acho que o grande lance da Clara era a amizade que ela fazia com todo mundo. Era uma pessoa super agregadora.

CT – Qual foi a primeira peça que você fez no Tablado? E o que você achou do seu desempenho?

CM – Péssimo. Eu fiz Pluft, o fantasminha, que o Tablado sempre monta quando o dinheiro aperta. Então, num determinado momento, o Tablado estava sem grana e a Clara disse: “Vamos montar ‘Pluft’ em 15 dias”. Formou o elenco e me incluiu. Nunca tinha feito papéis grandes, só algumas pontinhas. Imagine, então, protagonizar. Ensaiei em 15 dias, naqueles esquemas rápidos da Clara. Foi uma catástrofe. Estreei péssima (consegui decorar, diferente dela), mas foi muito ruim. Lembro até que o meu terapeuta chegou a me perguntar porque não conseguia falar o texto mais naturalmente...

CT – Em quantos espetáculos você atuou no Tablado?

CM – Uns vinte.

CT – Depois você começou a atuar como assistente de direção da Clara. Por quanto tempo exerceu esta função? Destacaria alguma montagem?

CM – Fui assistente dela durante muito tempo. Acho que comecei em O Gato de Botas.

CT – Em algum momento a Clara te nomeou como sucessora dela? Houve esse papo entre vocês ou estava implícito?

CM – Quando eu era muito pequena, nem fazia teatro ainda, a Clara me chamou e disse: “Você é minha herdeira”. Eu nem sabia o que era isso. “Você vai ter os direitos autorais de todas as minhas obras, porque botei em testamento”.

CT – Mas à medida que você foi trabalhando como assistente de direção e ela ficou doente, deve ter chegado um momento em que ficou mais do que claro que ela iria partir um dia e que alguém teria que assumir a direção artística do Tablado...

CM – Acho que ficou óbvio para ela, para muita gente aqui no Tablado, mas a Clara não oficializava nada.

CT – Qual foi a primeira peça que você dirigiu e como você analisa o resultado?

CM – Foi O despertar da primavera, com um grupo de alunos. O resultado foi excelente, era um grupo ótimo, muito talentoso e eu tive uma sorte danada. Desse grupo faziam parte, entre outros, a Cláudia Abreu, o Michel Bercovitch, o Marcelo Olinto. Foi um sucesso retumbante, a ponto de adolescentes que não conseguiam entrar pularem o muro para assistir. Era para ficarmos dois dias em cartaz, mas a Clara gostou tanto que ganhamos uma temporada de três meses. Um sucesso parecido com o das montagens do Damião, como O Ateneu.

CT – Isso já nos anos 80...

CM – Exato.

CT – Aos poucos, você passou a atuar menos, ficando mais voltada para as aulas e a direção das montagens. Mas a atriz continua existindo e você tem feito alguns trabalhos. Você destacaria algum? Qual a sua opinião sobre a Cacá atriz?

CM – Eu não gosto de mim como atriz, mas gosto de fazer cinema. Eu adorei a experiência que tive com Domingos de Oliveira em Carreiras, um filme de baixo orçamento que fizemos em uma semana. Ele é um super diretor. Então, como atriz prefiro fazer cinema a teatro. Não me agrada repetir vinte vezes a mesma peça. Gosto de ensaiar, de estrear e fazer um mês de temporada.

CT – Você prefere ensinar ou dirigir?

CM – Adoro as duas coisas. Eu amo ensinar. Gosto de dar aula para adolescentes, de pegá-los livres, abertos para tudo. Só não gosto muito de dar aula para adulto, embora faça isso de vez em quando. E também adoro dirigir. Se você me der um palco, um ator que acredite em mim e um texto, vou me divertir. Adoraria ter um diretor igual a mim. Acho que não gosto de ser atriz porque aprecio o diretor que fica em cima. Como diretora, dou segurança ao ator, pelo menos perto da estréia. Antes eu destruo...(risos)

CT – Em que aspectos a Clara te marcou mais profundamente, tanto em termos pessoais como artísticos?

CM – Em primeiro lugar, ela me marcou pela pessoa amorosa que era. Uma grande pessoa, que aceitava todo mundo. Acho que isso vem do meu avô, que recebia em sua casa, em Ipanema, tanto intelectuais como o bêbado da esquina. E uma pessoa com a capacidade de amar da Clara tinha que ter uma capacidade criativa muito grande. Ou seja: me parece que amor e criação andam juntos. Sem paixão não se faz nada.

CT – E quais os defeitos que a Clara tinha?

CM – Ela era uma tirana! Uma tirana muito cheia de disciplina. Mas são bons defeitos...(risos). Eu, por exemplo, até hoje sou maluca com horário, fico louca correndo atrás do tempo. Acho que ela me deixou assim. “Não pode chegar atrasada nem cinco minutos. Precisa chegar cinco minutos ANTES de começar o ensaio. Tudo é muito sério”.

CT – O Tablado passou por várias fases, tanto no que diz respeito às direções artísticas como aos anseios das pessoas que vinham estudar aqui. Você podia falar um pouquinho dessas fases, da relação do Tablado com a TV Globo...

CM – Nos anos 70, a escola tinha muito status. Estavam o Hamilton Vaz Pereira, o João Carlos Mota, eles criavam muito, faziam laboratórios. Na década de 80, talvez porque a Clara já estivesse cansada, o Tablado começou a ser uma escola em que só o tempo de aula importava. Era uma loucura. Não que não tenha hoje, mas melhorou muito porque o Tablado cresceu. E quando comecei a dirigir senti necessidade de ter um elenco, porque todas as pessoas já tinham crescido e saído daqui. Então, o Tablado estava sem elenco. Fiz, então, um grande teste, peguei alunos de todas as turmas e escolhi vinte pessoas. Muitas já fizeram várias peças e espero que continuem fazendo.

CT – Como ficou o Tablado após a morte da Clara? Continuou o mesmo? O que mudou? Como foi a transição da gestão da Clara para a sua?

CM – Como eu já disse, a Clara não oficializava nada, mas na prática mostrava o desejo dela. E o desejo dela era que eu desse continuidade à filosofia que ela havia implantado no Tablado. Mas é óbvio que este “inventário”, que durou uns dois anos, foi muito difícil. Afinal, perder uma pessoa como a Clara é terrível.

CT – No dia do enterro dela, o caixão não entrava. E você teria dito: “A Clara não quer ir”. Isso é verdade?

CM – É. Foi incrível: o caixão não entrava, tiveram que quebrar o lugar onde ele ficaria. Eu nunca consegui esquecer esta cena. Foi realmente muito forte.

CT – Bem, vamos agora falar de vida. Como o Tablado se sustenta?

CM – O Tablado não se sustenta há 55 anos. Cheguei a essa conclusão no ano passado. A economia do Tablado é doméstica, acho que sempre foi. A Clara sempre botou dinheiro dela nas suas produções, na época não existia patrocínio. Por outro lado, era mais fácil. Você juntava três amigos, pedia para a mãe de um deles costurar, pedia para uma amiga desenhar os figurinos. Ou seja: os técnicos de teatro eram amadores. Mas, de uns tempos para cá, os técnicos foram se profissionalizando, o que não tem nada de errado, mas ao mesmo tempo foram ficando cada vez mais caros. Os cenógrafos e os figurinistas vivem disso. Antes, a Ana Letícia tinha os estágios dela, dava aula em Niterói, mas fazia os cenários para a Clara sem cobrar nada. Mas a profissionalização dos técnicos fez com que o Tablado necessitasse mais de dinheiro.

CT – Desde o início, a proposta do Tablado sempre foi a de dar aulas de improvisação. Como surgiu essa idéia?

CM – A Clara institui a improvisação depois de voltar da França. Ela estudou improvisação lá e ficou encantada. Era uma novidade. Por isso, quando ela voltou quis fazer o seu grupo de teatro. Mas só depois criou a escola.

CT – O Tablado se sustenta com as aulas e com os espetáculos. Agora, você lembra por que a Clara começou a dividir o ensino com outros professores? Porque durante muito tempo só ela dava aula e só havia duas turmas: a adiantada e a atrasada.

CM – Acho que foi uma forma de manter as pessoas aqui. Ao mesmo tempo em que os pupilos começaram a dar aula – Louise Cardoso, Sura Berditchevski, Lionel Fischer, Bernardo Jablonski, Damião, entre outros – também começaram a ganhar seu sustento. E a escola começou a crescer.

CT – O Tablado conta atualmente com 20 professores. Eles têm que seguir algum método específico ou têm liberdade para construir suas aulas? E todos são ex-alunos?

CM – Todos. E todos estudaram com a Clara. Mas cada um tem sua trajetória e total liberdade para optar por uma maneira própria de conduzir a aula. E isso é ótimo: conviver com diferenças. E afora estes vinte professores, o Tablado também conta atualmente com uma professora de voz, a Sônia Dumont, e uma professora de corpo, Ana Soares.

CT – Fora o curso de improvisação e as práticas de montagem no final do ano, que os professores fazem com seus alunos, que outras atividades o Tablado oferece ao público e/ou aos seus alunos?

CM – Além das aulas, dos espetáculos de final de ano e das montagens oficiais do Tablado, promovemos leituras, palestras e o Festival de Esquetes, de responsabilidade do Lincoln Vargas – que estudou muito tempo aqui – e que já está no décimo ano.

CT – O que é o Festival de Outono, que existe de uns dois anos para cá?

CM – São as melhores peças do final de ano mostradas no outono do ano seguinte numa pequena temporada.

CT – Qual o próximo espetáculo do Tablado?

CM – Vamos voltar com O rapto das cebolinhas na festa da reforma de 55 anos do Tablado.

CT – Como foi esta reforma?

CM – O Tablado estava muito velho e comecei a lutar pela reforma. Como não consegui patrocínio de ninguém, tive a idéia de vender as cadeiras para os amigos do Tablado. Deu super certo. Acho que se tivesse um milhão de cadeiras teríamos vendido todas. A gente sempre tem medo de pedir, mas quando comecei a campanha faltaram cadeiras. E, no início, eu pensava: “Como vou conseguir vender 150 cadeiras?”

CT – Ao preço de R$1.000,00, não?

CM – Sim.

CT – E essas pessoas têm seus nomes nas cadeiras? Como é o esquema?

CM – As pessoas que compraram ficam com as cadeiras cativas por 10 anos.

CT – E convite para vir às estréias?

CM – Todos vão ganhar convites para as estréias, e mais três durante a temporada.

CT – Você lembra por que a Clara resolveu criar os Cadernos de Teatro? É talvez a revista mais antiga de teatro no Brasil...

CM – Eu acho que ela queria ensinar teatro para todo mundo, para o Brasil inteiro, aos pequenos grupos amadores das cidadezinhas que tem aí pelo país.

CT – Como vai ser a festa dos 55 anos?

CM – Vai ser a festa de 55 anos do Tablado, mais a reforma das cadeiras bancada pelos amigos, os 50 anos da revista, a primeira parte do acervo da Clara, que vai ser entregue à Casa de Rui Barbosa. Mas não sei se vai ser tudo junto. Estou esperando para ver qual o melhor modelo.

CT – Você foi casada durante muitos anos com o Ricardo Kosovski, pai do Pedro, que já fez muitas coisas no Tablado como ator e agora está começando a atuar como assistente do Leonardo Brício. Fala um pouco do Pedrinho. Quantos anos ele tem?

CM – Tem 23. Acho que o Pedro é um talento. Ele está se descobrindo, porque como a gente é família de circo, nasce no teatro e tem que jogar em todas, dirigindo, escrevendo, atuando, dando aula.

CT – Agora vamos falar um pouco de você, das suas qualidades e dos seus defeitos, profissionais e pessoais. Qual a sua opinião a seu respeito?

CM – Acho que sou excessiva e agressiva. Esses são os defeitos. Mas sou muito generosa.

CT – Como você acha que as pessoas te vêem?

CM – Eu não, sei porque as pessoas têm um certo medo de mim.

CT – Como tinham um pouco da Clara?

CM – É.

CT – O Bernardo Jablonski nos disse que tinha pavor da Clara. Mas ele a adorava e vice-versa.

CM – É verdade. Quanto a mim, as pessoas fizeram uma comunidade chamada “Cacá te fez chorar?” Eu achei horrível...

CT – E você faz os alunos chorarem?

CM - Não, meus alunos não, mas às vezes, quando eu estou dirigindo, rola um chororô qualquer. É normal.

CT – Ainda existem aquelas famosas filas em que as pessoas passavam a noite para conseguirem se inscrever aqui no Tablado?

CM – Não. A Clara ainda estava viva e eu pedi para ela acabar com essas filas. Porque era desumano. Imagina, deixar as pessoas dormindo na rua por três noites. E o nível do Tablado baixou muito com o crescimento desta fila. Os alunos queriam vir para cá pensando que o Tablado era um trampolim para a TV Globo.

CT – Existe um processo de seleção ou os alunos são aceitos por ordem de inscrução?

CM – Agora fazemos um processo de seleção de alunos.

CT – Como é esse processo?

CM – Os alunos novos respondem a um questionário, que passa pela diretoria e pelos professores. A partir daí, escolhemos. É um questionário muito simples, com perguntas do tipo: “Você gosta de teatro? Qual peça já assistiu? etc. Mas a prioridade é para os alunos que já estão dentro do Tablado.

CT – E como é um curso de improvisação? O aluno fica no Tablado quanto tempo quiser?

CM – É livre. E ele fica o tempo que quiser.

CT – E aí vai permanecendo na mesma turma ou trocando de professor?

CM – Vai trocando. Os meninos de Zé - Zenas emprovisadas foram nossos alunos no Tablado e até hoje fazem aula.

CT – E não há o sistema tradicional de aprovação e reprovação?

CM - Não. Já quiseram fazer esse sistema dentro do Tablado, mas a Clara não quis. Argumentou que o Tablado ia perder a cara. Ela sustentava que o Tablado é bom por ser livre. A proposta não é ficar ensinando teoria. Nós temos um palco e a possibilidade de experimentar tudo que a gente quer, de buscas linguagens, de testar nossa capacidade. A prática é fundamental.

_____________________________
Esta entrevista, publicada nos Cadernos de Teatro nº 175, foi concedida a Lionel Fischer e Daniel Schenker, cabendo a este último a redação final.

__________________________.
As diretrizes do manipulador de afetos


ENTREVISTA com BOSCO BRASIL



Os espectadores cariocas talvez só tenham entrado em contato com o dramaturgo Bosco Brasil a partir do sucesso alcançado pela montagem de Ariela Goldman para seu texto Novas diretrizes em tempos de paz. Mas Bosco já trilhou longa trajetória, a maior parte dela em São Paulo, onde seu nome circula na mídia desde a década de 80. Nascido em Sorocaba, em 1960, ele logo se mudou com a numerosa família (são seis irmãos, ao todo) para a capital paulista. O contato com o teatro não demorou muito, surgindo nas suas peregrinações pela biblioteca, a parte mais fresca da casa. Anos depois, escolheu no jornal, utilizando como critério a simples ordem alfabética, a primeira peça que iria assistir. A escolha foi Antígona, montagem de formandos da Escola de Arte Dramática (EAD), o mesmo texto que marcaria seu exame de aptidão para o curso de Artes Cênicas na ECA. Tendo iniciado carreira como ator, Bosco Brasil acabou se notabilizando como autor, transitando entre o teatro e a televisão. Até hoje, assinou cerca de 40 textos.

* * *


Cadernos de Teatro - Como foi o seu primeiro contato com o teatro?

Bosco Brasil - Meu primeiro contato se deu através do texto. Meu pai era de 1910. Portanto, um intelectual do século XIX. Chegou a escrever uma peça, A retirada de Laguna. A biblioteca ficava numa parte muito fresca da casa, o melhor lugar nos dias de calor. O teatro permaneceu como um enigma para mim até os 13 anos.

CT - Qual foi a primeira peça que você assistiu?

BB - Foi Antígona, numa montagem de formatura da Escola de Arte Dramática (EAD). Fui assistir com alguns amigos e escolhemos o espetáculo pela ordem alfabética. Comecei a me dedicar ao teatro freqüentando a Biblioteca do Museu Lasar Segall, composta pelo acervo de Anatol Rosenfeld.

CT - E onde você adquiriu prática teatral?

BB - Fui aluno de Berta Zemel e Wolney de Assis. Minha intenção inicial era estudar edição em super-8 e acabei descobrindo o curso de interpretação deles. Berta tinha apostilas do Eugenio Kusnet baseadas em anotações sobre Stanislávski.

CT - Em que momento você abandonou a trajetória de ator?

BB - Ainda gosto muito de trabalhar como ator, apesar de há anos estar distante desta função. Abandonei quando comecei a trabalhar em televisão.

CT - Fale um pouco sobre seu trabalho como ator.

BB - Fiz três peças de Pirandello: O homem com a flor na boca, Ce Ce e Vestir os nus. Era um período muito agitado. Havia pressão por um engajamento. Fiz teatro comunitário, em fábricas.

CT - Você tem formação universitária?

BB - Minha primeira opção universitária foi Ciências Sociais. Cursei até o terceiro ano. Até que escrevi uma cena para um trabalho, ao invés de uma monografia. Decidi, então, fazer Artes Cênicas, na ECA. O exame de aptidão foi justamente Antígona.

CT - Como começou a sua carreira profissional de dramaturgo?

BB - Comecei como profissional da escrita no rádio, a expressão artística que, para mim, tem mais potencialidade poética. Fazia rádio-novela, gravada em São Paulo mas distribuída para emissoras do Brasil todo. As temáticas esquisitas, as mais fantasiosas, ficavam para mim.

CT - E a escrita para teatro?

BB - Minha primeira peça que recebeu crítica em jornal foi Jornal das Sombras, em 1984, junção de dois textos de minha autoria: A hora marcada e O homem do soco.

CT - Novas diretrizes em tempos de paz foi sua primeira peça montada no Rio de Janeiro? A que você atribui o sucesso do texto?

BB - Foi. Acho que Rio e São Paulo vivem de costas um para o outro. O segredo da peça é a simplicidade, o mais difícil de se conseguir. Fiz um texto direto, que falava emocionalmente à platéia. No fundo, esta é a forma como consigo me comunicar porque, para mim, a dramaturgia é uma manipulação de afetos. Além disso, ainda sou um ator escrevendo. Então, pensei: que tipo de diretrizes estabelecia para mim como autor? Queria, portanto, que o texto resultasse simples o suficiente para ser feito por atores sem que nada mais fosse necessário. Um teatro que se voltasse para certas essências.

CT - Já Redentor não obteve a mesma repercussão junto ao público e a crítica. Por quê?

BB - Minhas relações com o teatro são sempre passionais. Na época de Redentor estava me separando de Ariela Goldman. Era um texto de encomenda para um grupo de atores jovens, sem um tema pré-determinado. Minha obra é pendular. Gosto de introduzir elementos épicos. Redentor trazia à tona uma outra faceta, diferente da de Novas Diretrizes. Mas o momento pessoal pelo qual passava interferiu na obra. Não consegui estabelecer diretrizes. Originalmente era para ser um monólogo e, no desmembrar do ponto de partida, houve uma fragmentação excessiva do que pretendia dizer. Não tive tempo para enxergar estes problemas. Os elementos épicos não foram bem explicitados dramaturgicamente. Foi um trabalho que saiu em processo.

CT - Você já tem uma trajetória longa na televisão, não?

BB - Trabalhei durante 15 anos na TV Globo, fazendo teledramaturgia como colaborador. Participei dos processos de criação de novelas como Anjo mau (2ª versão), Torre de Babel e As filhas da mãe, firmando parcerias com Maria Adelaide Amaral e Silvio de Abreu.

CT - Como você ingressou na televisão?

BB - Meu primeiro sucesso no teatro, em São Paulo, foi Budro. Lauro Cesar Muniz e Maria Adelaide Amaral foram assistir. Na época, ele estava vendendo os direitos de adaptação de As pupilas do senhor reitor para o SBT. Lauro Cesar não poderia realizar este trabalho porque estava na Globo e me convidou para fazer. Até então, eu tinha trabalhado no Teletema, ao lado de Walter George Durst, com quem aprendi muito. Agora, estou na Rede Record integrando a equipe de colaboração de Essas mulheres, novela de Marcílio Moraes e Rosane Lima.

CT - Como você analisa a televisão atualmente?

BB - Acho que a televisão hoje é muito pior do que a de antigamente porque o espaço para o risco é nulo. A TV dá muito dinheiro, ainda que a quantidade de espectadores tenha diminuído. Mas não existe a visão de que o risco pode alimentar um sucesso no futuro. É mais grave ainda a ausência de risco em emissoras que não estão no topo. Elas podem não subir justamente porque não arriscam. O espaço para as experiências está concentrado nas minisséries. A telenovela, meio de expressão dramático genuinamente brasileiro, sofre mais o processo que vivemos. Economicamente, é a galinha dos ovos de ouro. A partir do capítulo 40, a novela está paga. Dá dinheiro, merchandising, é vendida para o Brasil todo. Essas mulheres custou 18 milhões.

CT - Você gosta do trabalho em TV?

BB - Gosto. O grande barato de escrever para TV é o da formação de um ego genérico, coletivo. Há um momento em que você não sabe quem escreveu o quê. Dificilmente se trabalha menos de oito horas por dia. A grande dor está em como conduzir uma história.

CT - Segundo Peter Brook, o teatro é “a arte do encontro”. No entanto, de Novas diretrizes em tempos de paz para cá, esta cumplicidade palco-platéia não se repetiu, ao menos com a mesma intensidade. Antes o teatro era um acontecimento, mas agora parece caminhar para uma banalização cada vez maior.

BB - Estamos enfrentando um problema. O teatro é uma zona em que o eu e o tu se encontram. Mas o teatro permeado pelo afeto vem sendo negligenciado. São Paulo tem um movimento mais vigoroso de produção. Novas diretrizes era um entretenimento propondo reflexão.

CT - O que você aconselharia para quem está começando a escrever para teatro?

BB - Todo mundo chega com a sensação de que sempre ocultaram o segredo da escrita para teatro. Eficiência dramatúrgica é adquirida, mas a teatral vem antes. Aconselho que se busque primeiro o teatral ao invés do dramatúrgico, ainda que seja importante conhecer dramaturgia. O gol é conseqüência de uma construção e para fazê-lo é preciso habilidade, leveza e precisão.

CT - Há algo de misterioso no acerto teatral?

BB - O teatro é um fenômeno inexplicável, fruto de uma confluência de desejos, de afetos. O que existe de teatral na vida? É um entendimento decisivo para quem quer amadurecer. Criamos vida, não imitamos.

CT - O que mais é importante para o dramaturgo?

BB - O autor precisa escrever para teatro e não fazer literatura. No início do terceiro ato de O inimigo do povo, de Ibsen, há pedras espalhadas pela casa. A entrada teatral das pedras no espaço cênico é de uma força maravilhosa. O palco é um suporte, assim como a tela para o pintor. Na pintura você consegue “enxergar” o gesto do pintor. No teatro é a mesma coisa. Teatro é ritmo e música. E preenchimento do silêncio. E ausência de silêncio, no caso da longa pausa de John Cage. Além disso, há três importantes indicações de rubricas: relativa ao tempo, que pede reflexão rítmica, ao silêncio, que está explicada em si mesma, e à pausa, que traz a incidência do narrador.

CT - Como vem se dando sua relação com os diretores que transpõem suas obras para o palco?

BB - Nunca tive problemas com os diretores. Sei o que é o dia-a-dia do teatro. Fui diretor artístico do Teatro de Câmara de São Paulo, na Praça Roosevelt. Em relação às minhas obras, Cibele Forjaz dirigiu O acidente e foi maravilhosa. Agora Ricardo Kosovski está à frente da montagem de Abelardo e Berilo (intitulado, no espetáculo paulistano, como Os coveiros).

CT - Há uma polêmica bastante contemporânea relativa à transposição teatral de obras literárias. Como você analisa esta questão?

BB - A assimilação do material literário deve ser feita pelo dramaturgo. Já me deparei com bons resultados, mas, em geral, não gosto. Na maior parte das vezes que alguém me procurava para adaptar romances e obras poéticas eu perguntava sobre o que a pessoa estava realmente querendo dizer e encontrava uma peça que falava sobre aquilo. Existe um desconhecimento da riqueza dramática. As pessoas não costumam ler teatro hoje em dia.
_______________________________
Esta entrevista, publicada nos Cadernos de Teatro nº 174, foi concedida a Lionel Fischer e Daniel Schenker, cabendo a este último a redação final.


__________________________
Cumplicidade e paixão


Entrevista com IVAN SUGAHARA



Carioca de 29 anos que só desembarcou realmente no Brasil aos sete depois de temporadas nos Estados Unidos e na França, Ivan Sugahara não decidiu logo que queria ser diretor. Tanto que começou a cursar economia e cinema, abandonou ambos, e se formou como ator na Casa das Artes de Laranjeiras (CAL). E a paixão pelo teatro, iniciada, aos 14 anos, no colégio Andrews, nas aulas de Gustavo Gasparani, integrante da elogiada Cia. dos Atores, rendeu a fundação do grupo Os Dezequilibrados. Nove anos e muitos espetáculos depois, a companhia apresenta Lady Lázaro, montagem centrada na figura da poetisa Sylvia Plath. Não é o único projeto de Ivan, que está terminando o curso de Teoria do Teatro na Uni-Rio, sob a orientação de Flora Sussekind.
A descoberta do desejo de ser diretor veio à tona nas aulas com Celina Sodré, diretora do Studio Stanislavski. Daí em diante, partiu, ao lado de Os Dezequilibrados, para a montagem de espetáculos, boa parte apresentada em espaços não-convencionais. Um quarto de crime e castigo, mostrado no quarto de um apartamento na Urca, fazia um recorte de Crime e castigo, de Dostoievski, autor retomado em Um. Bonitinha, mas ordinária levava o espectador a uma peregrinação pela Casa da Matriz, ao passo que Vida, o filme discutia a espetacularização da realidade em pleno hall do Espaço Unibanco. Combinado colocava a platéia em cena ao atribuir a todos os presentes a função de detetives encarregados de desvendar um crime misterioso, enquanto Dilacerado representava uma retomada do trabalho do ator como elemento central num espetáculo calcado em depoimentos pessoais contundentes.

* * *

Cadernos de Teatro
- Como você começou a fazer teatro?

Ivan Sugahara - Foi por acaso. Eu estava no Andrews e Gustavo Gasparani, que havia sido aluno de Miguel Falabella na escola, estava dando aula de teatro. Lá fizemos A comédia dos erros, Aurora da minha vida e Hair, que foi uma montagem praticamente profissional, um trabalho repleto de espírito libertário, muito forte para nós. Vejo que hoje em dia continuo perseguindo este clima de celebração, de happening.

CT - Em que momento você se decidiu pelo teatro?

IS - Não me encontrei com a profissão naquele momento. Na época do vestibular, saí do Andrews. Pensei em fazer Comunicação Social, passei para a faculdade de Economia um pouco sob pressão dos meus pais. Até que viajei para Salvador e assisti a um show numa favela composto por cenas da comunidade. Aí me deu saudade do palco. Voltei para o Rio, liguei para o Bruce Gomlevski, com quem tinha estudado no Andrews, e ele me disse que ia se matricular na CAL. Comecei a cursar Economia e a escola de teatro ao mesmo tempo. Mas não estava certo em relação a nenhum dos dois. Tranquei e fui fazer faculdade de Cinema. Voltei na CAL para ver uma montagem de Hoje é dia de rock, que eu estaria fazendo se não tivesse interrompido o curso, e foi neste momento que tudo mudou.

CT - Você começou a trabalhar com teatro, a partir daí?

IS - Gustavo me chamou para fazer assistência dele no Andrews. Trabalhei com ele durante cinco anos. O teatro me movia, mas não me sentia encaixado como ator. Achava meio aborrecido aquecer, ensaiar e decorar. Me formei com Gerald Thomas na CAL e no último dia de apresentação tinha a exata noção de que nunca mais ia entrar em cena. Fiz assistência para Gustavo no infantil Galinhas – um melodrama de penas e dirigi uma adaptação de A revolta dos brinquedos. Foram boas experiências, mas comecei a viver uma crise com o teatro infantil de má qualidade, uma escola de viciados, repleta de estereótipos.

CT - Como foi fundado o grupo Os Dezequilibrados?

IS - Eu sempre quis trabalhar em grupo, talvez pelo fato de ser filho único. A companhia Os Dezequilibrados foi fundada em 1996. Em 98 fizemos nosso primeiro espetáculo: Uma Noite de Sade. Num primeiro momento até chamamos Gustavo para dirigir, mas ele não pôde. Depois de Sade o grupo brigou e eu me dei conta de que precisava aprender melhor a dirigir. Fui estudar com Celina Sodré. Comecei a ter aula particular de atuação. Mas logo entrei em crise. Passei para aula teórica e depois de direção. Fiz assistência dela em várias aulas particulares e nas turmas da CAL. Mas hoje vejo que se o Andrews representou a paixão pelo teatro, Celina foi minha grande escola. Aprendi um sistema de trabalho com ela.

CT - E os seus espetáculos depois de Uma noite de Sade?

IS - Veio Um quarto de crime e castigo. Conheci Cristina Flores, Ângela Câmara, Joelson Gusson e Lucas Gouvêa através de Celina. Cristina propôs fazermos Crime e castigo. Mergulhamos numa adaptação, valorizando a história de amor entre Sônia e Raskolnikov. Foi uma de minhas maiores aventuras teatrais. Ali nasceu verdadeiramente a companhia e configuramos identidade artística e projeto estético.

CT - Fale um pouco sobre a valorização da companhia dos espaços
não-convencionais.

IS - Esta questão surgiu do desejo de trabalharmos novas formas de relação com o espectador, num primeiro momento a partir do espaço não-convencional. Um quarto de crime e castigo nasceu de experiências. Na verdade, não queríamos fazer a peça num apartamento. A idéia inicial era levar para um teatro. Procuramos pauta e não conseguimos. Então, começamos a apresentar para convidados no apartamento do Lucas e da Ângela. Estreamos para quatro espectadores. Celina foi uma das primeiras a assistir. Depois tivemos uma conversa marcante em que ela disse que poderíamos ambientar num quarto. Antes nós fazíamos no apartamento, como se estivéssemos num teatro. Mudamos, passando a valorizar mais o fato do espectador ser cenário. Fomos percebendo o estabelecimento de uma relação especial com o público.

CT - De fato, nos espetáculos montados em palco italiano, a platéia está lá atrás e muitas vezes mal vê o ator...

IS - Buscamos uma platéia mais cúmplice e ativa. Bonitinha, mas ordinária seguiu o mesmo percurso. Era um filhote de Um quarto de crime e castigo, com Nelson Rodrigues descendendo de Dostoievski e a casa, do apartamento (a montagem foi realizada na Casa da Matriz). O público era quase colocado na posição de voyeur. Queríamos que o espectador se confundisse com Edgar, como se passasse, de alguma maneira, pela via-crucis dele, tentado entre o bem e o mal, entre o dinheiro e o amor. Procuramos fazer com que a platéia fisicalizasse a sua experiência. A montagem de Um, uma adaptação de O grande inquisidor (presente no livro Os irmãos Karamazov), era num teatro, mas não no molde convencional. O espectador passava por todo o espaço. Dilacerado, por sua vez, buscava o engajamento emocional do público.

CT - Como é o cotidiano de ensaios do grupo?

IS - Varia muito. Há espetáculos que ensaiamos muito; outros, não. Uns começam com o texto e eu proponho situações ligadas ao universo da peça; em outros, o texto nasce no decorrer do processo de ensaios e, às vezes, não tenho nada além de um tema. Foi o caso de Vida, o filme, em que estudamos intelectualmente a espetacularização da realidade, mas não possuíamos nem personagens, nem situações. Procurei então abordar como cada um espetaculariza a sua vida. Acredito realmente na compreensão a partir da cena porque o carnal e o vivo podem gerar elementos capazes de oferecer uma outra camada ao texto original.

CT - Você se considera um bom diretor de ator?

IS - Em Um quarto de crime e castigo valorizei muito os atores. Depois fiquei deslumbrado com a encenação. Acho que de Dilacerado para cá estou recolocando o foco no ator. Mas não que não tenha trabalhado com os atores ao longo desses anos. Na direção, faço de tudo. Interpreto a cena, falo da compreensão geral e de questões bem específicas, interrompo, deixo correr sem interrupção. Vou entendendo como acessar o ator. Com alguns preciso ser mais delicado; com outros posso provocar mais. Fizemos Lady Lázaro em um mês porque trabalho com Cristina há sete anos e ela responde bem à direção.

CT - Como você analisa o atual panorama do teatro carioca?

IS - Percebo uma grande e séria crise de público. Nós não renovamos o público. Quem era jovem na década de 70 continua freqüentando, mas as pessoas estão envelhecendo. Existem iniciativas isoladas. Há, é claro, Confissões de adolescente e Cócegas. No geral, acho que o público jovem é atraído por um determinado tipo de temática. A vida é cheia de som e fúria (espetáculo dirigido por Felipe Hirsch) chamou gente distante do teatro. Não foi por acaso. Abordava o jovem contemporâneo que cresceu na cultura pop.

CT - Exceções à parte, por que você acha que o público não está indo ao teatro?

IS - A má qualidade dos espetáculos é um fator, mas sempre houve peças ruins. Há o dado econômico e a agravante da violência, mas trata-se, sobretudo, de uma crise cultural. O projeto político da ditadura militar venceu e hoje não formamos mais cidadãos e sim técnicos que aprendem seus ofícios específicos. Falo isto em relação ao teatro que pensa o mundo, não o de entretenimento. Além disso, o teatro tem uma especificidade que é muito deslocada da contemporaneidade.

CT - Como se mantém um grupo como Os Dezequilibrados?

IS - Com paixão. É preciso investir cerca de 10 anos acreditando e trabalhando sem ganhar dinheiro até construir uma trajetória. A não ser que a pessoa tenha sorte ou conhecidos. Nós estamos juntos há nove. Só em 2004 conseguimos ganhar dinheiro. Até então ninguém sobrevivia do trabalho do grupo. Ainda não vivemos disso. Todo mundo corre por fora com outras atividades. Na verdade, vejo três maneiras de um grupo se sustentar: através de patrocínio ou, melhor ainda, subvenção para os espetáculos; da venda de apresentações; e da bilheteria. Acho que a Cia. Ensaio Aberto, dirigida por Luiz Fernando Lobo, conseguiu renovar seu público. Hoje temos que trazer os espectadores para dentro do teatro. Eles não vêm espontaneamente.

CT - Como você percebe a crítica teatral?

IS - Acho complicado que cada jornal só tenha um crítico. Áreas como cinema e música contam com um número bem maior de profissionais. Sinto falta de uma crítica que dialoga mais ao invés de julgar as estréias, até porque o espetáculo vai mudando ao longo de sua temporada. O ideal seria que ajudasse o trabalho a evoluir. E que o crítico se colocasse como parte integrante da classe teatral.
________________________________
Esta entrevista, publicada nos Cadernos de Teatro nº 173, foi concedida a Lionel Fischer e Daniel Schenker, cabendo a este último a redação final.


_____________________________________
O Tablado é a mãe do ZÉ


O sucesso percorre muitas vezes caminhos imprevistos. Ainda assim, poucos apostariam na possibilidade de que Z.É – Zenas Improvisadas (que retoma temporada no próximo mês de março, após superlotar todos os espaços em que foi exibido) se tornasse um dos maiores sucessos da temporada de 2004. No entanto, não foi à toa que o espetáculo, criado por um time de jovens e promissores atores - Fernando Caruso, Marcelo Adnet, Gregório Duvivier e Rafael Queiroga - despontou na cena carioca, tendo como base a improvisação, espinha dorsal do curso de interpretação do Tablado, escola que todos os atores ainda freqüentam e conhecida por semear a paixão pelo palco.

Cadernos de Teatro - Falem um pouco sobre o projeto de Z.É – Zenas Improvisadas.

Caruso – É um espetáculo de improviso que conta com três variáveis constantes: uma cena que muda a cada semana, uma aula-show ministrada por um professor convidado - que nós não temos a menor idéia de como será - e a presença de um ator de fora. Na entrada, o púbico recebe uma explicação sobre o tipo de participação que precisamos, que pode ser escrita ou ao vivo.

Gregório – Algumas pessoas acham que combinamos previamente. Digo então
para falarem alguma coisa durante o espetáculo. Na improvisação, estamos sujeitos
a mistérios durante todo o tempo.

Caruso – E o que nós tentamos combinar acaba dando errado.

CT - Um espetáculo como está bastante ligado a uma escola voltada para a improvisação como o Tablado, não?

Caruso - O Tablado é a mãe do . Se o ator sabe improvisar, então está preparado
para o que vier. Podemos brincar em cena, mas não nos desconcentrar porque a
peça precisa continuar. Uma vez faltou luz no meio de uma fala minha em Jonas e a
baleia
. Os atores me pediam para parar e eu continuei.

Gregório - O Tablado põe as pessoas no fogo.

Caruso - É um curso que acontece no palco, verdadeiro espaço de experimentação. Na primeira aula o aluno já sobe na frente de 40 pessoas para fazer um macaco bêbado. Há quem não tope e desista. Já outros cursos têm uma preocupação mais teórica, que, obviamente, não é ruim. Mas aqui acabamos criando vício pelo palco.

CT - Vocês tiveram medo que o espetáculo não desse certo?

Queiroga - No começo achamos que seria um desastre.

Caruso - Tememos que apenas nós achássemos graça.

Adnet – Mas é importante dizer que, apesar de fazermos improvisações, não subimos
no palco sem saber de nada.

CT - Como é o treinamento na improvisação?

Caruso - Nos preparamos de todas as formas possíveis. Até porque o cérebro é um músculo que, ao ser treinado, vai ficando cada vez mais afiado. O treino é importante para adquirirmos uma química entre nós, de modo a sabermos em cena da necessidade de cada um dos atores.

Queiroga - Geralmente as pessoas acham que não existe treino no improviso quando, na verdade, há toda uma escala a ser feita.

Caruso - Às vezes, percebo que se repetisse algo que fiz não teria tanta graça. Como em mineração, descobrimos veios, alguns inesgotáveis, outros sugados até o fim.

Adnet - É necessário ter cara de pau, resposta instintiva e confiança para responder com o seu material aos estímulos.

Gregório - É confiar na sua intuição e defender a idéia até o final.

Adnet - Não podemos duvidar de nós mesmos.

Gregório - Do contrário, o público percebe que você não acredita no que está fazendo.

CT - Há quem não seja capaz de improvisar?

Caruso – Acho que o que mais faz a pessoa travar é quando alguém diz: improvisa!

CT - E não há algo que determine que o bom improvisador seja necessariamente um bom ator e vice-versa?

Caruso - A arte da atuação é enganar a platéia e, às vezes, mais profundamente. Marco Nanini alcança uma espontaneidade decorrente de grande estudo e preparo. E há quem seja excelente improvisador, mas incapaz de abrir mão de seus cacos para fazer determinada coisa.

CT - Improvisação não está ligada apenas ao humor. É possível improvisar a partir de temas fúnebres?

Caruso – Numa cena de discussão em Eu, Henrique Viana, 17 anos, reprovado, virgem, estou voltando pra casa, fui mais contundente e a atriz achou que estava bravo com ela e saiu de cena quase chorando. No drama preciso vender verdade, enganar que aquilo está acontecendo na hora e freqüentemente me obriga a mudar entonações para criar um novo gás. Já fazendo Aluga-se um namorado me dei conta de que existem piadas que precisam funcionar como um relógio cirúrgico. Há um motivo para que seja igual a cada sessão.

CT - Entre os atores do espetáculo, você, Marcelo, é o menos experiente. Como se deu a sua entrada em Zenas Improvisadas?

Adnet - Dizem que tenho um alto grau de autismo, mas que, em compensação, consigo compartilhá-lo com as pessoas. Nunca fui muito normal. Era uma criança estranha. Aprendi a ler e a escrever com três anos. Sempre tive uma tendência maníaca. Comecei a falar russo por minha conta. Na faculdade, compus raps. Acho que por tudo isso Fernando me convidou.

Caruso - Nos conhecemos desde os 14 anos.

Queiroga – E improvisação não é algo que se aprende só no palco.

Caruso – Quando fomos fechar o elenco, vimos que precisávamos não só de bons profissionais, mas também de atores com cabeça de roteirista. Marcelo era assim, só que não fazia teatro.

CT - O que te faz (Marcelo) buscar tantas influências, fontes diversas, manias diferentes? De onde vem tanta curiosidade?

Adnet - Não tenho a personalidade muito definida (estranho isso, né?). Por isso, não tenho interesses muito definidos, um perfil bem traçado. Assim, minhas últimas manias foram: altinha na praia (uma terapia relaxante), Adoniran Barbosa (o palhaço-poeta-urbano-pobre-intelectual), jogo do bicho (ganhei oito vezes em 6 meses). Lembro de adorar ir ao subúrbio, tinha uns 15 anos, pegava o metrô e me metia em lugares paupérrimos por diversão. Conhecia todos os trocadores e motoristas do 157, companheiros de conversas, com quem analisava o número de passageiros que faltavam para alcançar o mínimo. São quase que surtos, mas, definitivamente, desconheço de onde vêm essa curiosidade bizarra.

CT - Falem um pouco sobre a improvisação musical.

Caruso – São escolhidos um artista e uma profissão. Nós fazemos uma apresentação do artista. Daí, introduzo a música e Marcelo leva adiante, sozinho. Há um cruzamento de dados bastante interessante. Além disso, Marcelo tem uma gama de conhecimentos absurda. É capaz de conversar sobre futebol, tipos de plantas que existem no Jardim Botânico, jogadas de xadrez. Refere-se a tantas coisas que eu desconheço...

Adnet - Ajuda o fato de vir de uma família musical. Adquiri intuição.

Caruso - Não se trata de simplesmente cantar uma música fazendo imitações. Criar uma música já é difícil. Na hora, mais ainda.

Adnet - E antes eu ainda tinha que criar uma harmonia.

Caruso - Eu percebia que ele ouvia um acompanhamento que não existia.

CT - Como foi a trajetória do espetáculo, desde a estréia até hoje?

Caruso – Estreamos no Café Cultural em agosto de 2003, onde permanecemos durante um mês. Tivemos dificuldade depois de vender o espetáculo porque é um trabalho de improvisação. Fizemos duas semanas no Teatro do Jockey aliadas a duas semanas no Teatro Maria Clara Machado, onde fomos muito bem acolhidos por Moacir Chaves. Feliz e infelizmente, depois de um tempo não cabíamos mais no Planetário. Migramos, então, para o Teatro dos Quatro, que, apesar de ter cerca de 400 lugares, conserva em sua estrutura uma proximidade com o público, sempre localizado no campo de visão do ator.

CT - Na opinião de vocês, com exceção de espetáculos como Zenas Improvisadas, por que o jovem não freqüenta atualmente o teatro?

Caruso - É o fim de uma era do teatro. Este é um assunto delicado e polêmico. Há uma baixa de público em geral por causa do preço do ingresso. O teatro compete com todas as formas de entretenimento que, muitas vezes, são mais baratas. E as pessoas têm mais hábito de ir, por exemplo, ao cinema. Se os ingressos fossem mais baratos teríamos um entretenimento vertiginosamente menos custoso do que o cinema. Existe ainda a falta de preocupação em encarar seu espetáculo como um produto que precisa ser destacado e diferenciado. É preciso ter uma noção de marketing na hora de vender sua peça. Por que o espectador deve sair de casa para te assistir? O teatro ainda está configurado numa época em que era bom negócio. E é uma arte associada à pompa, o que é bom pelo lado do ritual e ruim pelo desconforto que gera. Poderia ser um acontecimento mais informal.

CT - Há parentescos entre os espetáculos que vêm fazendo sucesso no Rio de Janeiro: a presença de humor, a possível conexão com o besteirol, o atrativo do inusitado. Quando você fala em “o fim de uma era do teatro” estaria se referindo também a concepções de teatro que se tornaram inviáveis com o passar do tempo?

Caruso - Sim e não. Os grandes textos precisam continuar sendo montados, mas pelos grandes atores. As comédias que vêm fazendo sucesso no Rio demonstram ter noção de como conquistar seu público, vender seu produto como algo diferenciado. Não podemos esquecer que cinema, livro e CDs pertencem ao passado, no sentido de algo que foi previamente registrado, escrito ou gravado, ao passo que o teatro ocorre no presente. É vivo. Talvez fosse bom surpreender o público e montar Romeu e Julieta com só Romeu morrendo um dia e só Julieta no outro. Não que todas as peças precisem ser assim, mas é um atrativo.

Queiroga – Nós demonstramos interesse pelo público. É por isso que existe sucesso.

Caruso – O teatro depende de noção e consciência da presença da platéia. O filme pode ser apresentado numa sala vazia, a música, surgir como som ambiente, mas o teatro não existe sem público. É preciso ter preocupação com o público na hora em que se vai montar um espetáculo. A questão principal é: será que o público vai gostar de tal coisa? E não apenas se o ator gosta ou não de determinado texto e personagem. Eu, Fernando Caruso, não me sinto com cacife para acrescentar algo numa montagem de Nelson Rodrigues. Deixo para os que são experts. Os jovens devem fazer algo de que gostem e em que acreditem.

Adnet – Conheci uma época em que só havia TV convencional. Os jovens de hoje recebem muita quantidade de informações e não agüentam peças muito lentas. Eu, por exemplo, tenho dificuldade em ler. Zenas Improvisadas é dinâmico.

Caruso – Qualquer coisa que seja diferenciada traz um novo gás. E quando o público jovem gosta, chega antes, sendo “injusto” com os mais velhos. Mas temos a preocupação de trazer espectadores que ainda não vieram. Até porque nossos padrões de comparação, como com o grupo Monty Python, são mais conhecidos do público adulto.

* * *
3X4

Fernando Caruso
“Casa” de Fernando Caruso há 12 anos, o Tablado fez com que o ator adquirisse vício pelo palco. Não foram poucos os espetáculos do Tablado que integrou: Gato de botas, Jonas e a baleia, Cavalinho azul, Eu, Henrique Viana, 17 anos, virgem, reprovado em seis matérias, estou voltando pra casa, Camaleão na lua, A alma boa de Setsuan e O alfaiate do rei. Aluno de professores como Cacá Mourthé, Lionel Fischer, Ricardo Kosovski, Guida Viana e Johayne Ildefonso, Fernando também se formou em publicidade pela PUC.

Gregório Duvivier
Marcando presença no Tablado desde 1996, quando tinha apenas 10 anos, Gregório Byington Duvivier acumulou experiência em aulas com Cacá Mourthé e Ricardo Kosovski e ganhou a cena nas mostras de esquetes da escola e nas bem-sucedidas montagens de O alfaiate do rei e Zenas Improvisadas. Concilia a atividade artística com a Faculdade de Letras na PUC.

Marcelo França Adnet
Estreante em teatro em Zenas Improvisadas a convite do amigo Fernando Caruso, Marcelo França Adnet participa desde a adolescência de gravações de jingles publicitários como cantor. Estudante de Comunicação Social na PUC, Marcelo se apaixonou pelo teatro e buscou a profissionalização. Em pouco tempo participou da montagem de O alfaiate do rei e fez participações em seriados como Malhação, Turma do Didi e A grande família e no comercial da “Oi”. Não é só: no final de 2004, fez quatro projetos teatro-empresa para a Petrobras e participou da leitura de Rasga Coração, célebre texto de Oduvaldo Vianna Filho.

Rafael Queiroga
Cursa o Tablado há sete anos, tendo passado pelos professores João Brandão, Cacá Mourthé, Isabela Sechin, Ricardo Kosovski e Bernardo Jablonski. Em 2005, será aluno de Leonardo Brício, ao mesmo tempo em que atuará como assistente da professora Bia Junqueira. Ainda no Tablado, participa sempre das Mostras de Esquetes (atuando e dirigindo), e também de espetáculos de final de ano de outros professores, em substituição a alunos que saem repentinamente. As principais peças em que atuou são Médico à força (estréia, aos cinco anos), Pequeno alquimista, O Ateneu e O alfaiate do rei.

Causos

No último dia da última temporada, um jovem de 15 anos teve um ataque epilético assim que a peça começou. Tivemos de recomeçar a peça. Ele passa bem.

Ricardo Kosowski, quando participou como diretor, propôs um “Momento Gerald Thomas” em que todos os atores (inclusive Orã Figueiredo, o convidado) tiveram que exibir a bunda para votação da platéia de qual seria a melhor.

Orã Figueiredo, ao apresentar uma música da coletânea de CDs, surtou e lançou, sem prévio aviso, Cauby Peixoto, para surpresa geral. Adnet se virou e deu tudo certo. Fez sucesso e a platéia nem percebeu.

Silvio Guindane já teve um ataque de riso frenético durante uma das cenas improvisadas.

Marcius Melhem (o convidado de honra em todas as últimas apresentações) certa vez quis colocar o Adnet “no fogo” e deu um título de música quilométrico para dificultar a composição da música e acabou ganhando uma esculachada no final da mesma (na voz da Zélia Duncan).

Na sua primeira participação (nossa terceira apresentação da vida) o professor convidado Johayne Ildefonso achou que a aula de improvisação que ele tinha que dar incluía a platéia e propôs uma danceteria louca com todo mundo dançando, no Café Cultural. Foi bem engraçado.

Nossa estréia, por falta de combinação prévia, teve 2h45. O Cico, nosso primeiro professor convidado da história, repetiu todos os exercícios que ele achou legal. Mas no fim todo mundo se divertiu muito. Só achou “um pouco longo”. Também, pudera! Duas horas e quarenta e cinco minutos!
_______________________________
A presente entrevista, publicada nos Cadernos de Teatro nº 172, foi concedida a Lionel Fischer e Daniel Schenker, cabendo a este último a redação final.